Desde 1974, o Brasil ouve Galvão Bueno narrar a Copa do Mundo. Foram onze até hoje. E, se depender dele, outras virão. O locutor esportivo chegou a anunciar que não narraria mais Mundiais, mas mudou de ideia e acaba de renovar contrato com a Rede Globo até 2019. Nesta entrevista, ele diz que a derrota épica do Brasil para a Alemanha e a perda do hexa em casa não abalam a mística do país do futebol e que não pode ser acusado de elogiar demais – seja a seleção, o Felipão ou o Neymar. “As pessoas esquecem que estou lá para animar o espetáculo.” Galvão Bueno recebeu VEJA para a conversa que se segue pouco antes de embarcar para a Alemanha, onde vai narrar o Grande Prêmio de Fórmula 1 deste fim de semana.
Derrotado em casa, humilhado pela Alemanha e ultrapassado pela Argentina – o Brasil ainda pode ser chamado de o país do futebol?
Galvão Bueno – Não há dúvida de que a derrota para a Alemanha foi humilhante e que fomos ultrapassados pela Argentina. Mas a mística da seleção não sofre impacto. O mundo todo ainda nos ama e nos vê como o país do futebol por tudo o que fizemos nestes quase 100 anos, pela maneira com que sempre jogamos. Quem teve Garrincha e Pelé? O que precisa ser feito é uma revisão de valores, para que se possa retomar o caminho certo. Não se pode confundir o desempenho de um time com a riqueza de uma história.
A reação à derrota para a Alemanha por 7 a 1 foi exagerada? O apresentador Luciano Huck, seu colega, chegou a dizer que aquilo foi o nosso 11 de Setembro.
G.B. – Houve reações exageradas, sim. No caso do Luciano, eu falei na hora para ele: “Pois é, Luciano, são coisas diferentes. Lá as consequências foram outras”. Mas quem não erra na vida? Já falei um monte de bobagem. Nas eliminatórias da Copa de 1990, eu me atrapalhei e narrei um gol errado. E comecei a dar desculpas. No dia seguinte, o Armando Nogueira (jornalista esportivo morto em 2010) me chamou e disse: “Você perdeu a maior chance da sua vida de ter sido simpático com o telespectador e reconhecer o seu erro em vez de ficar dando desculpas”. Daquele dia em diante, cada vez que erro, e sei que errei, reconheço e peço desculpas.
O senhor foi acusado de ter elogiado o técnico Luiz Felipe Scolari durante todo o torneio e passado a criticá-lo para valer só depois do 7 a 1. Isso foi um erro?
G.B. – Desde o primeiro jogo desta Copa, o Casagrande, o Ronaldo e eu sempre fizemos críticas à forma como a seleção estava jogando. Eu disse, em alguns momentos, que o trabalho do Felipão era coerente. Mas em momento algum elogiamos a seleção nem dissemos que era uma maravilha. Entre as muitas coisas que aprendi com o Armando Nogueira é que devemos elogiar sem bajular e criticar sem ofender. Eu pauto a minha vida com base nisso. Nunca fiz uma crítica que carregasse ofensa pessoal. E nunca fiquei babando ovo para ninguém.
Mas no jogo contra Camarões, quando o Ronaldo criticou a seleção, o senhor perguntou se ele não estava sendo “exigente demais”.
G.B. – Você não pode esquecer que eu também tenho o papel de animador da brincadeira. Sou um vendedor de emoções que anda no fio da navalha. De um lado, tem a emoção que você tem de vender e, do outro, a realidade dos fatos. Na Copa do Mundo, mesmo que o time não tenha feito uma grande partida, tem a festa, todo aquele envolvimento das pessoas. Mas em momento algum nós dissemos que a seleção jogou um grande futebol. O que eu disse foi: a comissão técnica tomou um caminho na Copa das Confederações e acertou em cheio. Persistiu nesse caminho na Copa do Mundo e o trabalho não funcionou. O erro, pareceu-me, foi a falta de humildade de reconhecer que a Alemanha era melhor. E acabar jogando com pouca cautela.
Os jogadores brasileiros choram demais?
G.B. – Nunca vi uma seleção que chorasse tanto. Criou-se um clima um pouco exagerado em cima desta Copa no Brasil. Acho que isso tem a ver com essa coisa do hino cantado a capela. Era emocionante mesmo. Nas primeiras vezes que ouvi, fiquei com lágrimas nos olhos. Mas não precisava ser algo levado a um nível tão extremo. Tenho minhas dúvidas se isso não abalou o emocional do time. Houve um exagero na contusão do Neymar também, aquela coisa meio fúnebre, de levar a camisa dele no jogo contra a Alemanha. Tinha visto isso na Copa das Confederações, quando morreu o jogador de Camarões, em 2003. Pode ter prejudicado também. Fala-se muito em time de guerreiros, grupo de guerreiros, mas futebol é um esporte. O Brasil criou a fama do futebol dele com arte, não com um time de guerreiros. É um momento de retomada desse caminho.
Foi a Copa das Copas?
G.B. – Esse termo “Copa das Copas” é fruto de um interesse político que não me interessa nem me agrada. Mas foi uma Copa especial, disputada com intensidade, como poucas vezes eu vi. Teve a Colômbia, os Estados Unidos, a Costa Rica… Foi uma Copa de superações. A de 1982 talvez tenha sido, de todas de que participei, a mais fantástica, pelo time que o Brasil tinha, pelo fato de ter sido batido pela Itália. Esta foi uma Copa de muita emoção. Não vou dizer que tenha sido a mais bela ou a mais técnica.
Agora virou moda dizer que o futebol brasileiro precisa mudar. Quais as mudanças necessárias, na sua opinião?
G.B. – No que diz respeito à seleção, acho que deve existir um gestor, um sujeito com experiência e conhecimento do futebol internacional, que saiba como se trabalha na França, na Itália, na Espanha, no Brasil. É alguém para se preocupar menos com o dia a dia e mais com os caminhos a ser seguidos. Na minha opinião, ninguém está mais bem preparado neste momento para assumir essa tarefa do que o (ex-jogador) Leonardo. É um sujeito que fala cinco idiomas, foi campeão na França e na Itália e tem formação de técnico e gestor.
E, para o técnico, concorda com a tese de que ele deveria ser um estrangeiro?
G.B. – Não sou dessa linha. Primeiro, devemos pensar no caminho a tomar. Veja bem, eu sou um narrador e não tenho de opinar sobre nome de técnico. Cito alguns nomes agora, mas apenas como detentores de certas características, como o perfil adequado para o momento. Como técnico, você tem o Tite, o Muricy, o Abel Braga, o Luxemburgo, grandes nomes do Brasil. Vamos enfrentar uma eliminatória duríssima, talvez a mais difícil do futebol brasileiro, e por isso esse trabalho tem de ser muito bem pensado.
Sem mudanças no comando da CBF, o senhor acha possível darmos um salto como deu a Alemanha a partir da derrota na Eurocopa de 2000?
G.B. – Tem um presidente eleito, não vejo como mudar. Isso é uma coisa muito complicada de discutir e de responder numa frase. Tivemos, todo mundo sabe, uma série de problemas na gestão do Ricardo Teixeira, que foi excessivamente longa e deixou sombras que o obrigaram a renunciar. Mas foi uma gestão com várias conquistas esportivas. Seria muito melhor que elas tivessem acontecido sem as sombras. Está respondido? Não tenho poder de decisão sobre a CBF, mas gostaria, sim, que ela se modernizasse e se modificasse.
Nas redes sociais, o senhor ganhou o apelido de “Neymarzete”. Acha que exagera nos elogios ao jogador?
G.B. – Cada um fala o que quer, mas eu não concordo. Acho até que em certos momentos critiquei excessivamente o Neymar. Casagrande e eu temos a tese de que ele deve prender a bola na área, porque lá não vão cair em cima dele. Quando o Neymar prende a bola lá atrás, toma pancada o tempo todo. Agora, ele é a nossa estrela, é quem mais brilhava, e as pessoas não podem esquecer que eu estou lá para animar o espetáculo, para vender emoções. E, para aqueles que dizem que exagero, gostaria que ouvissem narrações de locutores de outros países. Sou até contido.
A atuação do Ronaldo como comentarista na Copa foi bastante criticada. Como o senhor a avalia?
G.B. – Essa reação é absolutamente normal. Quando o Pelé começou a trabalhar com a gente, nos anos 80, as pessoas esperavam que ele pegasse o microfone e desse o show que dava como jogador. Com o Ronaldo é a mesma coisa. Ele foi um dos maiores atacantes da história do futebol mundial. Daí, as pessoas imaginam que, como comentarista, ele vai pegar o microfone e se sair como Frank Sinatra. Não é assim, são coisas diferentes. No início da Copa, ele foi, entre nós, o primeiro a criticar a seleção de forma mais incisiva.
E a Patricia Poeta, com quem o senhor fez dupla? Ela teve um papel difícil, substituir o que a Fátima Bernardes fez em Mundiais anteriores, quando conseguiu uma empatia forte com jogadores, telespectadores.
G.B. – Ela foi muitíssimo bem. Preparou-se intensamente para ter domínio sobre o assunto e conseguimos fazer um contraponto da notícia com a opinião. Por isso, inclusive, o nosso espaço no telejornal foi aumentando. Ontem fui lá dar um abraço no William Bonner, porque o editor-chefe do jornal, quem pagina o jornal, é ele. E o Bonner nos deu espaço, incentivou-nos o tempo todo.
O senhor está para lançar um livro de memórias…
G.B. – Nestes quarenta anos de carreira convivi com todos os grandes personagens do esporte brasileiro. Então, conto minhas histórias com Pelé, Ayrton Senna, Nelson Piquet, Fittipaldi, Rivellino, Zico.
O senhor vai revelar alguma coisa sobre esses jogadores famosos ou sobre o piloto Ayrton Senna que até hoje ninguém ficou sabendo?
G.B. – O Ayrton tinha aquela cara de bonzinho, mas era muito sacana. Ele tem duas comigo que não se faz. Uma vez, fomos embarcar para Miami e ele prendeu três cadeados nas passadeiras da minha calça, sem que eu percebesse. Evidentemente, eu fui barrado no raio X. E eu dizia: “Mas como vou tirar isso daqui se não tenho a chave?”. E o Ayrton falava para o americano do controle que estava me barrando: “Ele é maluco, não deixa esse louco entrar no avião”. A outra vez foi no avião para o Japão. Tirei o paletó e a camisa, fiquei de camiseta, e deixei lá. Quando fui me vestir, minha camisa estava sem gola, sem botão e sem punho, que ele tinha cortado. Desci num calor danado e todo tapado com o paletó, e o Ayrton dizia para o japonês da imigração: “Manda ele tirar o paletó que você vai perceber que ele não pode entrar no país porque é maluco”.
Um jornalista sueco disse que, em uma entrevista no começo do mês, o senhor teria afirmado que era tão famoso quanto Bono Vox. Acha mesmo isso?
G.B. – Não falei aquilo em hipótese alguma. Esse rapaz escreveu um livro. Eu concordei em dar uma longa entrevista a ele. Foi ele quem ficou impressionado com o assédio em torno de mim. Isso é uma coisa que veio dele. Nem li o livro ainda. Não sou idiota de falar isso, de me comparar com quem quer que seja do tamanho de um Bono Vox. Se tivesse dito isso que ele me atribui, eu mesmo seria o primeiro a me considerar um idiota total.
Em uma entrevista a VEJA em 2010, o senhor disse que a Copa de 2014 seria a sua última. Agora, renovou contrato com a TV Globo até 2019. Desistiu de se aposentar?
G.B. – O que eu disse foi que não me via fazendo outra Copa do Mundo fora do Brasil. E naquele momento não me via mesmo. Mas a vida é dinâmica. Não se esqueça de que nós tivemos uma mudança de gestão na Rede Globo, muito relacionada à minha área. Eu me sinto extremamente feliz hoje trabalhando. É um novo desafio. Foram-me propostas coisas novas. Cheguei à conclusão de que é o que eu gosto de fazer, o que sei fazer, é onde eu realmente me realizo. E tem uma história de quarenta anos. Enquanto me sentir bem, com saúde e em condições de fazer o trabalho, e a Globo entender que eu sou importante nesse trabalho, vou ficar. Tenho contrato até depois da Copa de 2018. Então, respondendo à sua pergunta, voltei atrás, sim. Não tenho motivos para parar agora. Então, por que parar?
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Pedro Dias Leite e Bela Megale, de Veja