Depois dos 7 a 1 na semifinal da Copa do Mundo Fifa Brasil 2014, o tema para o qual o jornalismo esportivo se voltou foi a necessidade de renovação geral do futebol brasileiro. Passando das categorias de base até o pagamento das dívidas dos clubes com a União, cujo debate no Congresso já estava presente no primeiro semestre, mas que ganhou mais importância depois da Copa.
Em meio a isso, li muitos comentários sobre a responsabilidade das Organizações Globo nesta fase crítica, por ser a detentora dos direitos de transmissão dos campeonatos do país. O grupo foi um dos protagonistas da implosão do Clube dos 13 em 2011, aumentou o fosso entre o que os times recebem do broadcasting, com destaque para Corinthians e Flamengo, e mantinha a situação do futebol nacional como está por meio da dependência econômica destes e da ligação com a direção da CBF.
Incomodou-me tal situação, ainda que o que consta no parágrafo acima seja verdade – tendo eu, inclusive, escrito uma dissertação de mestrado sobre esse processo. Porém, apontar apenas um culpado, ou o principal deles, é tratar dirigentes, empresários e até mesmo os políticos brasileiros (ou ninguém nunca ouviu falar da “Bancada da Bola”?) como inocentes perante tal situação.
Se a renovação precisa ser geral, é necessário entender as condições legais em torno do assunto que proíbem, por exemplo, interferência estatal em associações privadas e dá à CBF o poder de definir o regulamento dos torneios. E a CBF tem eleições a cada quatro anos, mas para se candidatar é necessário o apoio de pelo menos oito federações e cinco clubes da Série A.
CBF lucra milhões todos os anos
Enfim, o intuito deste texto nem é discutir isso, até porque este autor concorda com a necessidade de se repensar a estrutura do futebol brasileiro e as relações de poder nela situadas, ainda que seja pessimista quanto a isso devido à prática político-boleira que se observa no país. Trataremos de como a Globo vem assumindo esta responsabilidade.
Em meio a discussões sobre as dívidas dos clubes, puxadas pelos jogadores por intermédio do Bom Senso FC a partir do ano passado, porém agora apropriadas pelos patrões que atrasam os salários, duas notícias me chamaram a atenção. Ambas publicadas na sexta-feira (1/8) com a participação do Globo Esporte, braço das Organizações Globo responsável por negociar os direitos de transmissão dos eventos esportivos.
Guilherme Costa e Vinicius Kochinski escreveram no UOL sobre uma reunião da CBF com clubes e Marcelo Campos Pinto, diretor do Globo Esporte, para discutir a Lei de Responsabilidade Fiscal do Esporte. A proposta da lei é financiar a dívida dos clubes com a União num prazo de 30 anos, só que com contrapartidas, com punições a serem aplicadas em caso de erros ou novos atrasos de pagamento numa avaliação anual das contas dos clubes.
Já seria estranha a presença de Campos Pinto nesta discussão por se tratar de dívidas dos clubes com a União. Até mesmo a presença da CBF como organizadora, já que enquanto a confederação lucra milhões todos os anos, os clubes seguem no vermelho, mesmo com a entidade organizando os campeonatos nacionais, ao contrário de outros países.
A implosão do Clube dos 13
O único argumento possível para o caso da Globo é que os recursos oriundos do broadcasting são a principal fonte de receita dos times e, geralmente, são adiantados, o que garante um respiro num futebol brasileiro perto de estourar uma bolha, com salários altos e alto volume de importação de jogadores, especialmente da América Latina, em troca de certa dependência na manutenção do status quo. Entretanto, em vez de tratar sobre a proposta de lei que tramita no Congresso, alguns times aproveitaram para pressionar o diretor sobre os valores pagos para a cessão dos direitos.
É preciso explicar que dentre os 40 clubes da Série A e da Série B, 18 negociam por valores maiores e com contratos alongados, garantindo a receita para três ou quatro anos, podendo inclusive antecipar a cota de um período seguinte. Enquanto isso, os demais ficam com um valor menor. No caso dos que estão na primeira divisão, pode-se chegar à metade do que o pior grupo dos 18 – divididos de acordo com o número de torcedores – recebe. Para quem participa da Série B, então, é mais difícil. Para a temporada atual, receberam 2,7 milhões anuais; enquanto o Vasco pode ter recebido mais que 30 vezes disso por estar entre os 18 e este ser o primeiro ano na segunda divisão – a partir do segundo ano o valor é reduzido pela metade.
Os clubes menores, então, resolveram pedir pela criação de um fórum exclusivo sobre o assunto. É preciso explicar, entretanto, que se não mudar a forma de gerenciamento do futebol nacional, como mostram os últimos anos, não adianta ter mais dinheiro à disposição se não se saberá gastar.
Além disso, os clubes brasileiros foram vanguarda no cenário mundial ao criar o Clube dos 13 e organizarem a Copa União em 1987, mas em vez de entenderem o papel de protagonismo no negócio que virou o futebol televisionado brasileiro a partir de então, perderam-se em administrações que tornaram os times tão dependentes do líder comunicacional que, quando a situação podia mudar, recebendo mais de uma concorrente deste grupo, houve a implosão da associação de times.
A negociação individual é a pior forma quando se trata de eventos esportivos. Para ficar no caso brasileiro, a EA Sports anunciou na semana passada que não terá clubes do país no Fifa 2015, um dos principais games de futebol, porque seria muito difícil negociar com cada um para a cessão dos direitos. Ainda que os valores não sejam altos, isso representa uma perda para a imagem dos clubes, já que o jogo pode ser disputado por pessoas de várias partes do mundo. Além de fazer com que os torcedores locais tenham que escolher grandes times estrangeiros na hora da diversão.
Mudança adiou o início dos Estaduais
A segunda matéria foi publicada na Folha de S.Paulo. Bernardo Itri e Dani Blaschkauer informam que a Rede Globo convocou representantes dos 20 clubes da Série A para discutir o futuro do futebol nacional em reuniões a ocorrerem a partir do dia 7. O convite assinado por Campos Pinto tem como pauta do calendário até a formação de jogadores, assuntos a serem discutidos pelos clubes, separados por grupos, com os integrantes do Comitê de Esportes da Globo: Renato Ribeiro (diretor da Central Globo de Esportes), Anco Márcio Saraiva (diretor de Marketing da Rede Globo), Roberto Marinho Neto (diretor de Projetos Esportivos Especiais), Pedro Garcia e Eduardo Gabbay.
Segundo os jornalistas, “o convite causou estranhamento em presidentes de clubes que não viram sentido em a emissora convocar uma reunião para tratar da formação de atletas”. Entretanto, não teriam visto problemas, provavelmente, para discutir com o grupo comunicacional o processo de gestão dos clubes e das entidades de organização dos esportes, a equação financeira e as oportunidades de novas receitas nos estádios. Sobre o calendário, é a emissora quem define a quantidade de datas que terá para transmitir jogos no ano, tendo que passar por ela mudanças como a deste ano, que adiou o início dos Estaduais para que os jogadores tivessem férias após pressão do movimento Bom Senso FC.
Um dos problemas que isso reflete é a mistura entre os interesses de mercado do grupo, com a preocupação com o produto que irá oferecer ao público; e o jornalismo do grupo, que se beneficia historicamente do fato de ter boas relações, e pagar pelos direitos de transmissão, para ter facilidades como a de poder ter acesso a espaços que nenhuma outra emissora de TV possui – ou fazer com que um apresentador pare um treino de helicóptero para gravar um quadro em meio à preparação para uma Copa do Mundo.
Relações de protagonismo
O aparecimento de culpabilidade ao grupo e a necessidade de melhorar o produto, que na Copa gerou boa audiência, esta vem sendo menor a cada ano na transmissão dos jogos locais, fez com que as Organizações Globo resolvessem discutir assuntos cuja chamada não lhe caberia. Assume-se como o “parceiro histórico do futebol brasileiro” para desviar-se das críticas apresentadas até aqui, tentando se mostrar protagonista em possíveis alterações do futebol nacional, perpetuando-se como um dos principais membros da organização do jogo no Brasil.
Não será a partir de um grupo comunicacional que a estrutura do futebol nacional vai mudar, ainda que este seja um dos principais atores das relações políticas que estão engendradas ao esporte brasileiro e que dificultam quaisquer avanços reais. Ampliar a “culpa” é destacar um poder que pode vir a ser bem maior. Deixar que o Globo Esporte chame a si o processo é melhorar ainda menos dentro do que deveria ser mudado e inverter as relações de protagonismo de quem faz o futebol neste país.
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Anderson David Gomes dos Santos é jornalista e mestre em Ciências da Comunicação