Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quando o foco é o berne, e não a vaca

No dia 30 de julho, uma quarta-feira, o Jornal Nacional exibiu uma matéria de cerca de três minutos sobre o Festival de Dança de Joinville. Referência na área, o evento é grandioso, e chegou à sua 32ª edição com recorde de público: 6,5 mil pessoas, entre profissionais e estudantes de dança, circulam pela maior cidade de Santa Catarina de 23 de julho a 2 de agosto. Isto posto, às tratativas.

O JN escolheu fazer um recorte econômico sobre o festival. Entrevistou apressadamente motoristas de van que ganham dinheiro extra com o transporte de companhias; empresários do ramo de chocolate que vendem seus quitutes em delicados sapatinhos; autônomos que circulam o país revendendo roupas e se aproveitam, entre aspas, do festival do Joinville para aumentar o pé de meia. “Em São Paulo o pessoal está de férias”, disse ao microfone da Globo um senhor. A repórter sorriu. Não foi um recorte específico e criativo que a imprensa até procura para lidar com um tema batido e repetido, haja o que houver. Foi, em última instância, uma escolha cruel e desinformativa. Porque imagens mostraram jovens bailarinas naquela van. Ora. Quem são? Fazem parte de que companhia? O que irão apresentar? O que “vendem”, enfim?

A matéria tornou-se desnecessária quando ignorou a notícia – o maior festival de dança do mundo – e escolheu orbitar em suas consequências óbvias e naturais. Momento chulo: o foco foi no berne, e não na vaca.

É certo que grandes eventos não precisam de mídia nacional mainstream para sobressair. Pensemos, pois, num festival de música como o Rock in Rio. Matérias do mesmo Jornal Nacional tratam da montagem do palco, dos números superlativos que acabam por não significar nada, das atrações das quais o público interessado está mais careca que Billy Corgan de saber. Novamente o óbvio surge como um monstro invencível, justamente quando o recorte mais criativo, levando-se em consideração a popularidade do evento, seria outro. Talvez, aí sim, falar com o motorista da van responsável por, por exemplo, levar Justin Timberlake do hotel à Cidade do Rock. Com produção afiada e um bom repórter, daria pano pra manga.

Sapatilha recheada com chocolates

O Festival de Joinville é gigante, mas, em sua essência, carrega o gene do desconhecimento, do desinteresse e do tímido apelo popular. Desafio: cite três companhias de dança brasileiras agora. (…) Por isso a crueldade: a reportagem não mencionou o nome de qualquer companhia de dança. Ou de coreografia apresentada. Nada. A escolha, deliberadamente equivocada, pode ajudar a entender a crise dos jornais televisivos (números) e até da grande mídia. O Jornal Nacional, de janeiro a abril de 2013, registrou 29 pontos de audiência diária, em média. Em 2014, essa média já caiu 12%, e está em 25,4 pontos.

É que ignorar um público específico e interessado – quando o JN voltará a Joinville? – em troca de uma expectativa fajuta de atingir seu pseudo-público alvo, é um tiro no pé. Funciona como desestímulo e ingrediente para a descrença, combustível da infidelidade.

Imagine uma dançarina que dá entrevista para o JN e, na TV, ouve o nome de um empresário ao invés do seu coreógrafo; e vê uma senhora apresentando sua sapatilha recheada com chocolates ao invés de seus passos literalmente calejados, treinados por décadas. É de doer.

As melhores companhias de dança do país estavam em Joinville. E, se depender do Jornal Nacional, seguirão em silêncio, apesar, incrivelmente, de todo o barulho.

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Cristiano Castilho é jornalista da Gazeta do Povo, de Curitiba, e pós-graduado em Jornalismo Literário pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL)