Até mesmo um âncora calejado como William Bonner não está isento de surpresas quando os acontecimentos (neste caso, uma fatalidade) atropelam suas crenças jornalísticas. Na noite de terça-feira (12/8), Bonner e sua colega Patrícia Poeta, questionaram na forma, no conteúdo, e colocaram Eduardo Campos, o ex-candidato ao cargo mais importante do país, na berlinda. Repreenderam-no por ter apoiado o PT. Patrícia, repetidamente e não escondendo a insatisfação com tal fato, confrontou o então candidato com o fato de ter “servido” ao PT durante três anos. O que foi empacotado como pergunta era, de fato, uma afirmação: “Não foi tempo demais?”, indagou Patrícia, ratificando a tese de Luciano Martins da Costa, expressa no artigo “O ‘Jornal Nacional’ muda o tom“, neste Observatório.
Políticos no banco dos réus
Esse formato escolhido pelo JN, no qual os jornalistas, na bancada, têm o candidato em inapropriada proximidade, suscita um intuito inquisitório – e não como deveria ser: um distanciamento geográfico que ratificasse a autonomia das duas partes, especialmente necessária quando a pergunta é sobre um tema polêmico, impactante.
Outros países, outros costumes
Na Alemanha, esse formato quase pessoal é infactível por uma percepção cultural, além de jamais ser aceito pelos assessores dos candidatos. Quando somente um candidato é entrevistado, o cenário do estúdio é composto de duas poltronas ou cadeiras e, no meio delas, uma mesa. A distância geográfica espelha a autonomia saudável e necessária entre os dois participantes. A prática da irritante repetição da palavra “candidato” substitui o que na Alemanha é a mesa. Jamais algum político alemão se deixaria repetidamente chamar de candidato sem se sentir exposto ao ridículo, já que os telespectadores sabem, de antemão, de sua função mesmo antes de ele chegar ao estúdio.
Se todos os candidatos têm a chance de participar da “sabatina midiática” por 15 minutos em horário nobre, por que então a falta de diferenciação? Como se o fato de eles dividirem o status de candidato resultasse em alguma possibilidade de uma diferenciação. Quando chegar a vez da atual presidente Dilma Rousseff, ao mesmo tempo presidenta e candidata, como então ela será chamada?
Dinâmica dos acontecimentos
A fatalidade e a resultante reviravolta na campanha presidencial com a morte do candidato no dia seguinte à entrevista ao Jornal Nacional aumentou ainda mais a shitstorm da qual Bonner já vinha sofrendo nas redes sociais. Espectadores reclamaram da “dureza” das perguntas do âncora. Nesse caso, onde a dinâmica dos acontecimentos não só nos surpreende, mas nos deixa em estado de choque, ocorre, como agora, o fato de Bonner adquirir o perfil de jornalista “übercrítico”, sem dó dos candidatos.
Na edição de quarta-feira (13/8), dia da morte de Eduardo Campos, o JN foi só elogios a “candidato”. Bonner tirou valiosos minutos do horário nobre para explicar ao telespectador o que acontece por trás das cortinas, dar ao user uma palinha do mundo maravilhoso que é um universo global.
Literalmente, de um dia para o outro, tudo ficou amigável, sorridente e o “jornalismo rígido” e suas implicâncias nas redes sociais se tornou, como diz um ditado em alemão, “neve do dia anterior” (não interessa a mais ninguém).
A explicação de Bonner
“Sempre que vai ter uma entrevista ao vivo no JN, a gente costuma pedir ao entrevistado para chegar com alguma antecedência, até para que ele possa se ambientar, antes de entrar no ar. E todo candidato faz isso. É um momento em que se pode conversar, tomar um café, quebrar o gelo, como a gente diz” (ver aqui)
Postura jornalística
A rede aberta ARD é formada por um conglomerado de emissoras regionais de rádio e TV. Isso se deve ao fato de que a autonomia da mídia alemã é garantida pela Constituição em “âmbito regional”, também em prol da preservação das características e diferenças culturais. O formato dos programas regionais da região da Baviera e da cidade de Berlim não poderiam ter pautas menos antagônicas.
O principal noticiário da noite em rede nacional é o Tagesthemen (Temas do dia), que tem sua redação em Hamburgo, sob o teto da NDR (Rede do Norte da Alemanha). Todas as noites, às 22h30, horário local, os âncoras comentam e analisam tudo o que foi relevante naquele dia. Exatamente por ser um rede pública com um chamado Auftrag (missão, dever) de informação, ela é uma das mais tradicionais do país. Ao lidar com os entrevistados, independentemente se o programa é de auditório ou no formato matinal, o tratamento é sempre de “senhor” e “senhora”.
Caren Miosga é uma das âncoras do programa. Pela sua aparência esportiva e decidida, foi vítima de ceticismo quando assumiu o posto. Nesse meio tempo, conquistou credibilidade e, mesmo não sendo um “transportador de simpatia”, com denominam os marqueteiros, ela veio, viu e venceu. O ápice de sua trilha como âncora do noticiário do final da noite aconteceria na terça-feira (14/8) – em meio a matérias sobre transporte de conteúdo misterioso para o leste da Ucrânia, o drama dos refugiados no norte do Iraque, e uma em que Miosga questionava da ministra do Exército, Ursula von der Leyen, sobre o papel da Alemanha no conflito.
Mas a “surpresa-Miosga” viria no terceiro e último bloco do Tagesthemen. Nele, ela aparece em cima da mesa e, antes de noticiar a morte de Robin Williams, afirmou: “Os senhores, com certeza, estão surpresos em me ver em posição tão antidogmática, mas às vezes é preciso ter coragem de ver as coisas de uma perspectiva diferente [em alusão ao papel de Williams no filme Sociedade dos poetas mortos]. Com esse gesto, nós fazemos reverência a um dos maiores atores”.
No dia seguinte, Miosga era não só o assunto nas redes sociais, mas até mesmo o Bild, verdadeiro representante da imprensa amarela e avesso a “surpresas jornalísticas” em forma e conteúdo, homenageou a âncora colocando-a na primeira manchete da versão digital (ver aqui).
O âncora William Bonner tem que enfrentar shitstorm e se defender da acusação de “ser muito rígido” nas perguntas aos candidatos. A âncora Miosga esbanja soberania e, provando igualmente ousadia e seriedade, não se pronunciou sobre o assunto desde então. Assim, a pauta mantém a repercussão e a intensidade, sem se esfarelar aos poucos e ir minguando nos dias seguintes.
A “novela Bonner”, assim como o próprio formato do JN, ainda nos renderá muitos capítulos de uma novela sem fim. Senão sobre a “rigidez das perguntas”, então sobre o hobby do “tio” em tuitar durante os blocos do jornal isso, mais aquilo e aquilo outro…
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Fátima Lacerda é jornalista freelance, formada em Letras, RJ, e gestão cultural em Berlim, onde está radicada desde 1988; autora do blog “Todos os caminhos levam a Berlim”, no Estadão.com