As entrevistas que o Jornal Nacional, da Rede Globo, vem realizando com os presidenciáveis revelam, além de interesses econômicos do meio de comunicação, a influência da agenda de atores políticos aliados. Ao contrário do senso comum, que cobra imparcialidade da mídia, o ponto de partida para o entendimento das engrenagens da grande imprensa brasileira é a assimilação de que os meios de comunicação não são meros intermediários “neutros” e “objetivos” entre cidadãos e autoridades políticas. Durante as eleições, a Globo procura se firmar como detentora de um papel próximo ao de uma instituição oficial, uma instância de representação popular. Em um cenário de enfraquecimento dos partidos políticos no Brasil, a mídia tenta incorporar o papel de porta-voz das demandas populares, “cão de guarda” dos interesses do povo, fiscalizando políticas públicas e inserindo temas no debate político.
Com as entrevistas realizadas com os presidenciáveis Aécio Neves (PSDB), Eduardo Campos (PSB), Dilma Rousseff (PT) e Pastor Everaldo (PSC), a Globo assume a posição de reivindicar para si a autoridade de poder falar e o poder de confrontar. E para falar e ser ouvida precisa de credibilidade, precisa que telespectadores/eleitores acreditem no que é dito. Os âncoras do Jornal Nacional atuam então como agentes políticos e, sim, com uma postura autoritária (não agressiva nem adversária aos entrevistados, mas sim, autoritária) e reivindicam para si o status político de formadores de opinião. A personificação dessa autoridade foi incorporada, especialmente nas redes sociais, na figura do apresentador do Jornal Nacional, William Bonner. De âncora importante e editor-chefe do telejornal de maior audiência do país, Bonner passou a ser visto – em posts e brincadeiras que rondam Instagram, Facebook e whatsapp – como defensor da sociedade, voz do povo, aquele que aperta, constrange e coloca os políticos em posição desconfortável, para júbilo dos telespectadores que veem nos membros da classe política a imagem de adversários, e não de representantes públicos.
Mesmo reconhecendo que existe um esforço em formatar as entrevistas em um padrão de minutos e teor das perguntas, a opinião da organização jornalística não deixa de ser detectada no teor das perguntas, em cada palavra e na entonação usada em cada entrevista. Os candidatos não são tratados de maneira igual; ora prevalece um modelo de entrevista mais respeitoso e capaz de preservar o candidato sabatinado, ora prevalecem situações de confronto. William Bonner realizou 21 intervenções na entrevista com Dilma Rousseff, ora interrompendo a fala da candidata, ora retomando questões para as quais considerou as respostas insatisfatórias. Já com Aécio Neves e Eduardo Campos, as intervenções chegaram ao mesmo número: cinco. A própria colega de bancada, Patrícia Poeta, teve bem menos tempo que Bonner. O apresentador falou por quatro minutos, enquanto Poeta conseguiu menos de um minuto de fala.
O Poder Moderador
Para quem louva a Globo e Bonner por serem “implacáveis” com os candidatos a presidente da República, exercendo supostamente o papel de representantes do povo – papel que está desacreditado na classe política – fica a reflexão de não existe imparcialidade e muito menos neutralidade em qualquer meio de comunicação. No máximo, permanece a busca desses pilares que o jornalismo se reveste e se protege, uma busca constante mas que sempre será isso, um caminho, e não um fim.
Com diferenças significativas no desenvolvimento dos meios de comunicação nas diversas regiões brasileiras, com a presença tanto de modelos mais partidários, como daqueles mais próximos de uma linha comercial, não é possível classificar o jornalismo praticado no país sob um único viés, apesar do esforço em identificar as origens e modificações dos sistemas de mídia e seus valores empregados nas heterogêneas redações jornalísticas do país. No Brasil, mesmo usando o discurso que serve de base ao Quarto Poder, o jornalismo local não conseguiu, naturalmente, transmutar junto à ideia de fiscalizador o contexto histórico dos Estados Unidos e do Reino Unido, que serviu de pano de fundo para a criação de suas noções jornalísticas.
Com um caráter histórico singular, a relação entre mídia e política no Brasil pode ser comparada ao Poder Moderador, onde os meios de comunicação atuam como detentores de um papel político ativo sem, contudo, se aliarem diretamente como porta-vozes de partidos e forças políticas. O Poder Moderador foi um dos quatro poderes de Estado instituídos pela Constituição Brasileira de 1824 e pela Carta Constitucional portuguesa de 1826, ambas de autoria do imperador D. Pedro I do Brasil. Coube ao Poder Moderador se sobrepor aos poderes Legislativo, Judiciário e Executivo. O modelo foi debatido em diversos artigos por Afonso de Albuquerque – pesquisador e professor no programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense – e coloca a mídia brasileira em um cenário particular com relação aos sistemas político-midiáticos conceituados por Daniel Hallin e Paolo Mancini no livro Comparing Media Systems.
Nuvem de fumaça
O lugar de onde falam os jornalistas e as organizações jornalísticas brasileiras está localizado na esfera de representante dos interesses da população. É daí que se dirigem, de maneiras particulares, aos agentes políticos e ao público em geral. Para Albuquerque, a mídia brasileira reivindica um lugar transcendental, de árbitro das disputas que se estabelecem entre as instituições e os agentes políticos. Tratando de um caso específico, as eleições presidenciais de 2006 no Brasil, Albuquerque consegue verificar no tratamento dado pelos entrevistadores do Jornal Nacional aos três candidatos mais bem colocados nas pesquisas de intenção de voto que disputavam a Presidência da República naquele pleito – José Serra (PSDB), Marina Silva (PV) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) – sinais de que a ideia de Poder Moderador na mídia era, de fato, incorporada pelos agentes da informação.
Mesmo com evidências expressivas que apontavam na direção de um alinhamento partidário do Jornal Nacional com a campanha de Serra, Afonso de Albuquerque observou que essa preferência não era referendada intencionalmente pelos entrevistadores. Esforçando-se para não seguir nenhum alinhamento claro de preferência a algum dos candidatos – utilizando roteiros de perguntas similares e questionamento agressivo, em graus distintos, a todos os candidatos –, os entrevistadores focavam sua atuação em uma postura que pretendia ser de agentes neutros e objetivos, mas assemelhavam-se mais a uma reivindicação de papel autoritário.
Dizendo agir “em nome do público”, os âncoras do Jornal Nacional, e por consequência a Rede Globo, reivindicam um mandato simbólico perante o público. Assim como os políticos sabatinados em suas entrevistas têm ou tiveram mandatos cuja atuação não é totalmente livre – ou seja, precisam prestar contas dos seus feitos à sociedade –, a mídia brasileira não pode atuar como porta-voz do povo sem a necessária transparência. Deve ser claro quem financia os meios de comunicação, assim como são expostos os financiadores das campanhas eleitorais. Às claras será possível distinguir o que de fato é fiscalização e informação do que não passa de mera nuvem de fumaça para esconder dos telespectadores e leitores os impulsos que motivam a atuação jornalística dos grandes veículos de comunicação no país.
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Sávia Lorena Barreto Carvalho de Sousa é jornalista política e mestre em Comunicação