Na última cena do derradeiro capítulo de “A grande família”, no ar no próximo dia 11 de setembro depois de “Império”, a família Silva se reúne em frente à TV para assistir à estreia de… “A grande família”. A metalinguagem foi a forma encontrada pela equipe de se despedir com humor e emoção da série, que chega ao fim depois de 14 anos no ar na Globo.
– Na história, a família recebe um telefonema da TV Globo dizendo que eles foram escolhidos para ser o modelo, a inspiração, de um seriado que a emissora está desenvolvendo. Vai um diretor visitá-los, dizendo que quer gravar uma comédia. O Lineu logo desconfia: “Ué, mas nós não somos engraçados…”, ele diz. Mas acaba convencido ao saber que o Tony Ramos vai interpretá-lo – conta o diretor-geral Luis Felipe Sá.
A família do seriado dentro do seriado terá ainda Gloria Pires (Nenê), Marcelo Adnet (Tuco), Lázaro Ramos (Agostinho), Deborah Secco (Bebel), Alexandre Borges (Paulão), Luana Piovani (Lurdinha) e JP Rufino (Florianinho).
– Todos os personagens vão experimentar essa brincadeira de ter ao lado um ator que vai interpretá-los – completa Luis Felipe.
Mas, é claro, vai ter confusão: Agostinho (Pedro Cardoso) começa a querer cantar de galo e a se meter nos roteiros, e seu personagem é cortado. A Revista da TV acompanhou um dia de gravação da produção, e os improvisos de Pedro Cardoso nas cenas em que o personagem maldiz a TV Globo por “arrancá-lo da história de sua própria família” provocaram risadas em todos.
É de alegria, aliás, o clima no set de “A grande família”. Ainda que os atores admitam que o trabalho vá deixar saudades, a sensação principal entre o elenco, muito mais do que de tristeza, é de dever cumprido.
– É muito bom saber que fizemos estes 14 anos da maneira que idealizamos. Sempre quisemos ficar no mesmo patamar de qualidade, criatividade, empenho, frescor, que tivemos o tempo todo. Não queríamos terminar com o programa chocho, requentado. Então, tenho grande orgulho de acabar do jeito que a gente sempre sonhou. Sempre brincávamos: não pode virar a xepa da feira! – comemorava Marieta Severo, num dos intervalos.
“Nunca subimos no salto”
Nos bastidores, o elenco de “A grande família” é famoso por ser completamente envolvido no processo criativo da atração. “A série é deles”, diz muita gente da equipe com quem se conversa. E, para Lúcio Mauro Filho, membro do elenco original, esse é um ponto fortíssimo.
– Há umas duas semanas, um amigo veio me visitar, e a gente estava em reunião para discutir sobre um episódio. Depois, quando ele me perguntou o que era, ficou surpreso: “Mas vocês ainda se reúnem para falar de episódio? A quase três semanas de acabar?”. Sim, sempre! Nós nunca subimos no salto, nunca deixamos que o sucesso nos acomodasse. Vemos tantos programas acabarem por desavença, porque ficou ruim ou porque encheu o saco… A gente não encheu o saco, mas temos outros anseios. Estamos, como artistas, em momentos muito diferentes do que quando entramos. Eu tinha 25 anos quando comecei, hoje tenho 40.
Lúcio diz que o percurso não foi fácil e encara como uma vitória, no fim das contas, o encerramento feliz da série.
– “A grande família” era um grande risco! Quando estreamos, “Os normais” eram a novidade e nós éramos o remake… Não fomos os queridinhos da imprensa. Essa sensação de missão cumprida, de ter chegado até aqui… E não foi sem brigas. Tivemos várias brigas. Mas conseguimos passar por cima de todas. E cá estamos, o elenco original, terminando 14 anos depois. Isso é uma vitória espetacular.
A experiência de viver o mesmo personagem por uma década e meia, eles destacam como inédita, única e peculiar. Marco Nanini diz que por todos serem experientes no teatro – “onde a função do ator é repetir, repetir, repetir, a mesma cena, inclusive” – o trabalho foi facilitado.
– O Lineu foi um personagem muito generoso. Tem uns personagens que implicam com a gente, são difíceis para entrar, chegar, descobrir. Mas o Lineu, não. Então você vai facilmente descobrindo coisas para driblar a repetição e ter mais animação para fazer o programa nessas condições de longevidade. E, aqui, a gente tem uma turma divertida, além de conversarmos muito sobre os programas, os roteiros. Isso ajuda – destaca Nanini.
Já Marieta fala cheia de carinho por Dona Nenê:
– Tenho quase 50 anos como atriz, e isso nunca me aconteceu. Nem acontecerá de novo. Este espaço é único. Só a Dona Nenê terá me habitado da forma avassaladora que foi. E eu gosto do que ela me deu perante o público, do olhar que ela fez com que o público tivesse sobre mim, Marieta. Eu olho para as pessoas e elas me dão um sorriso muito amoroso, e eu sei que é para ela. É um personagem muito afetuoso, tudo dela é regido pelo coração. Ela me deu essas lições.
Os personagens originais foram criados por Oduvaldo Vianna Filho e Armando Costa em 1973, e sua atualidade mantida nos anos 2000 (o remake foi comandado por Claudio Paiva, e a última temporada foi escrita por Adriana Falcão e Mauro Wilson) é uma das possíveis explicações para o sucesso de “A grande família”, na opinião de Nanini.
– Esses personagens foram criados pelo Vianninha e pelo Armando de forma muito concreta, representando muito bem uma família. A escolha dos elementos é praticamente na mosca. Todo conflito, toda situação, tudo que acontece na dramaturgia quase sempre tem a ver com a família – opina.
O diretor Luis Felipe acredita que a atração sempre teve “um jeito muito próprio de abordar a realidade”:
– É um programa que trata de questões do mundo íntimo. Um grande talento da série é ter uma comunicação de massa para problemas que todo mundo vive. Nos filmes, normalmente, a gente vê aquelas questões grandiosas, o grande amor, os desafios enormes. Aqui o tema é a disputa pela sobremesa, quem ronca no quarto, o sogro que envelhece.
A evolução dos personagens
Dentro desse universo, um dos maiores desafios sempre foi criar situações diferentes. E, em 14 anos, isso foi ficando cada vez mais difícil. É claro, os personagens foram envelhecendo, amadurecendo, tiveram que evoluir. Mas o principal era que não perdessem sua essência. Lúcio conta que, nas reuniões entre elenco e equipe, uma das frases mais usadas era a “mudar para não mudar”.
Já o diretor lembra que, no início, os episódios focavam muito mais nas situações do cotidiano do que em “fazer a história andar para frente”, mas isso, com o passar dos anos, foi mudando. Além dos saltos de tempo na trama, um grande trunfo de “A grande família” sempre foi incorporar em seus episódios eventos da vida real e as mudanças pelas quais o país foi passando.
– Não faria sentido falar da família brasileira só na fábula. Temos que lembrar que o programa era do Vianninha, o comunista da Rede Globo (risos)! Era um homem que vinha de um teatro de discussão da sociedade. Mas é claro que, em pleno ano 2000, a gente estava vivendo num momento de democracia muito sólida, e as questões sociais diziam muito mais respeito, por exemplo, a essa ascensão da nova classe média. A gente não podia ficar no conto de fada e não mostrar a realidade do povo brasileiro, a ânsia de melhorar. E falamos de muita coisa: com o Rogério Cardoso falamos de Viagra, tivemos o Tuco indo para o “BBB” no começo dessa moda de reality shows… Essa conexão com a realidade sempre foi muito importante para a gente – analisa Lúcio.
E se a despedida vai deixar um gosto de saudade, os atores garantem que a amizade formada nos bastidores vai continuar se estendendo após o fim da série. Guta Stresser e Vinicius Moreno, mãe e filho na tela, já estão juntos este fim de semana, por exemplo, na peça infantil “O médico que tinha letra bonita”. Aliás, o mascote da turma, aos 15 anos, com três de “A grande família”, diz que “aprendeu muita coisa boa e muita besteira” com os colegas mais experientes:
– Vou sentir muita falta. Depois de três anos convivendo com o pessoal, sair do nada vai ser muito estranho. Aqui foi tipo um curso de ator para mim. Quando não estou sabendo dizer uma fala direito, eles me ajudam, me indicam o sentido.
Evandro Mesquita, que há 9 anos interpreta o mecânico Paulão (“Mas parecem 22!”, brinca), é outro a destacar as amizades que vão ficar.
– Eu viajo com o Lucinho, nossas famílias, as crianças. Já fizemos duas grandes viagens, para Portugal e para a Disney. É um superparceiro, amigo que eu quero levar para a vida. Construímos relações fortes e verdadeiras aqui. É claro que teve atritos, como uma família. Mas o saldo é superpositivo. E acho que não vamos sentir tanta saudade porque vamos continuar a conviver de uma maneira ou de outra.
Para Lúcio, o fim deste ciclo não é exatamente o fim de “A grande família”:
– Eu torço sinceramente para que daqui a algum tempo venha uma nova família para fazer o que a gente fez pelos atores originais, porque é um tema que não se esgota. Termina aqui a segunda geração, mas nada impede que venha uma terceira. “A grande família” não morre jamais.
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Thaís Britto, do Globo