Há pouco mais de um mês na faixa das 21h da Globo, a novela de Aguinaldo Silva Império já mostrou a saga do nordestino que se deu bem na vida, a mocinha apaixonada pelo cunhado sem final feliz numa trajetória à la novela mexicana, vilã trancada em armário, camelódromo pegando fogo, artista plástico preso como falsário, empregada doméstica dispensada por usar unhas postiças, garotão surfista fazendo strip tease para blogueiro de fofoca, presidiário esquizofrênico etc.
Mas só agora, no meio do turbilhão de alguns tipos rasos – como a Xana Summer (Ailton Graça), um cabeleireiro que usa brinco, salto alto, maquiagem, todo e qualquer adereço que couber, mas não sabe explicar o que trouxe ao mundo além de sua carga cômica, e de Lorraine (Dani Barros), personagem anódina, sem brilho especial, possuída por uma chantagem que tem algo de anacrônico, oco e deslocado para os dias de hoje na teledramaturgia –, um núcleo polêmico e de comportamento social começa a engrenar. É o caso dos personagens Claudio e Beatriz, vividos pelos atores José Mayer e Suzy Rêgo.
No folhetim, obedecendo ao ritmo que lhe convém, o novelista explica para o público a relação aberta entre eles, casados há mais de vinte anos e pais de dois filhos. Nas sequências que foram levadas ao ar nas últimas duas semanas, Beatriz escancarou para o Brasil, em diálogos declaratórios, para escândalo geral dos mais conservadores, que sabe e aceita, desde o início do casamento, que o marido se envolve e mantém casos com garotos. Com voz adocicada e ternura nos olhos, ela faz o papel da esposa compreensiva, sempre objetivando o casamento, preocupada com a estrutura familiar, patrimonial e como a própria diz “com a felicidade do marido”. Quem ousa afirmar que esse tipo não existe? É o ponto alto da novela.
Quem coloca lenha na fogueira é Kleber Toledo, intérprete do aspirante a ator Leonardo, michê do cerimonialista que, ao contrário de Beatriz, não consegue aceitar as explicações de Claudio por se manter no armário. Para o telespectador, acostumado com a presença unânime de gays em tramas globais – na maioria das vezes de forma estereotipada, efeminado, como a vitrine de trejeitos Téo Pereira (Paulo Betti) –, a surpresa se dá muito mais pela compreensão da esposa, do que pela orientação sexual e da falta de coragem de Claudio em assumir isso.
Combinação quase infalível
Longe de ser apenas coisa de novela, marido dando escapadas e se relacionando com outro homem, esposa encontrando pistas sobre a traição e ignorando-as para manter o casamento aparentemente feliz, ou até mesmo sendo cúmplice do marido desde que sua posição oficial de esposa não seja atingida é mais comum do que se imagina na vida real. Aguinaldo Silva, muito além do ofício de contar uma história melodramática, capta com argúcia esses aspectos colocados debaixo do tapete por muitas famílias brasileiras e expõe isso, sem medo, em pleno horário nobre.
Evoluindo numa direção narrativa mais corajosa, Silva entrega conflitos também para os filhos de Claudio e Beatriz. De um lado, aparece Bianca (Juliana Boller), loira, educada, arrumadinha, bem entendida e livre de preconceitos. Do outro, é nítido para o público que o chefe de cozinha Enrico (Joaquim Lopes), um homofóbico, vai causar muita dor de cabeça. É a primeira vez no mundo das novelas em que ao invés do pai não aceitar o filho homossexual, veremos o contrário. Frases como “desse tipo de aberração estou fora” e “bichas são a desgraça do mundo” começaram a ser disparadas nos diálogos do personagem.
Graças a essa boa sacada, Império se mostra convencional no melhor sentido, comprovando que novela no Brasil é um espaço para crítica social e, para tanto, a homossexualidade e seu processo de aceitação e preconceito podem estar na pauta nos infinitos contextos que houver.
Essa tem sido, com mudanças e inflexões aqui e ali, a receita da teledramaturgia brasileira desde os anos 70 com Malu Mulher e Quem Ama Não Mata, e que continua dando certo, vide os casos extraconjugais de Stela (Maitê Proença) com homens mais novos, em Passione (Silvio de Abreu, 2011), e o casamento de aparência de Félix (Matheus Solano), em Amor à Vida (Walcir Carrasco, 2013).
Ainda que, nesses últimos anos, a audiência venha apontando que também aprecia outras receitas vez em quando, quando acerta, a combinação é quase infalível. Sobretudo se a novela ousa em uma tendência de comportamento, principalmente familiar, um grupo social ou uma questão de cultura contemporânea com certa precisão, a história se torna útil, interessante, discutível. O sucesso é certo e ninguém tasca.
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Murilo Melo é jornalista