Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Programa legal

A TV paga tem se transformado em um espaço privilegiado de renovação e qualidade e pode estar em processo de equiparação com o cinema na elite do entretenimento. Séries como “Breaking Bad”, “House of Cards”, “True Detective”, “Mad Men”, “Boardwalk Empire”, “Dexter”, “Downton Abbey”, entre outras, não só conquistaram prestígio como audiência, além de altos orçamentos. Passaram a influenciar os mercados de diversos países, construíram novas referências e consolidaram o que alguns qualificam de nova fase de ouro da TV – especialmente nos Estados Unidos. “Este é um momento maravilhoso para trabalhar na televisão”, disse Vince Gilligan, criador de “Breaking Bad”, na segunda-feira, quando ganhou o Emmy de melhor série dramática.

Nesta nova fase, o sonho dourado do jovem roteirista ou diretor em fazer um longa-metragem para o cinema cada vez mais tem cedido espaço para a televisão. “Até há poucos anos, os alunos mais ativos saíam do curso com um projeto de longa. Agora, em grande parte, eles se juntam em grupos, formam pequenas produtoras e montam projetos de séries para TV”, diz Giba de Assis Brasil, sócio da Casa de Cinema de Porto Alegre e professor no Curso de Realização Audiovisual da Unisinos.

Esse é um dos sinais de que, no Brasil, também sopram os bons ventos na TV fechada. Para alguns, um novo capítulo desse enredo começou a ser escrito a partir de setembro de 2012, quando entrou em vigor a lei que, desde sua gestação, em 2007, prometia revolucionar o campo audiovisual brasileiro. Sancionada em 2011, a Lei nº 12.485, conhecida como Lei da TV Paga, abriu o setor para as teles e impôs cotas de programas e canais brasileiros. “Acabou um pouco o comodismo. O mercado se tornou supercompetitivo e os canais, atualmente, precisam se preocupar com a audiência”, diz Rogério Gallo, vice-presidente do grupo internacional Turner. A contratação de Gallo, executivo que lançou a MTV no Brasil e passou pela Rede Globo, pelo SBT e pela Rede Bandeirantes, é simbólica dessa mudança de rumo. “Dirigir uma televisão sem ficar de olho na audiência seria, para mim, como dirigir um carro sem olhar para o velocímetro.”

Alberto Pecegueiro, diretor-geral da Globosat, relativiza o impacto da Lei da TV paga, já que a companhia que dirige sempre foi “a maior contratadora de produção independente do país”. Em sua análise, a televisão nacional sempre teve um padrão de qualidade alto e em consonância com a produção internacional. “No caso do panorama da mídia brasileira, a presença livre dos maiores grupos da mídia mundial já provocava esse alinhamento.”

Desde o ano passado – quando a vigência das cotas passou a ser plena –, os canais exibem 3h30 por semana de programas nacionais em horário nobre e as operadoras carregam um canal nacional para cada três estrangeiros. As exigências fizeram que, de 2012 para 2013, o volume de produção nacional na televisão praticamente dobrasse. Enquanto em 2011 tinham sido emitidos 1,9 mil Certificados de Produto Brasileiro (CPB) para filmes, seriados e programas na TV por assinatura, em 2013 esse número saltou para 3,3 mil.

Quantidade e qualidade

Não foi só na tela que o milagre da multiplicação se fez. Houve uma redução no preço dos pacotes e maior adesão dos consumidores da classe C ao serviço. Há dez anos, o universo de assinantes não chegava a 4 milhões. Até o fim do ano, estima-se que a TV paga esteja em 20 milhões de domicílios – o correspondente a 60 milhões de pessoas. A previsão é de que, em 2019, o serviço esteja presente em 31,4 milhões de lares.

Ao longo de 20 anos de existência, a O2 Filmes, uma das maiores produtoras do país, tinha feito quatro séries televisivas. Desde a criação da lei, emplacou dez. “É um mercado que começa finalmente a existir”, afirma Andrea Barata Ribeiro, sócia dos cineastas Fernando Meirelles e Paulo Morelli. “Como não tínhamos onde exibir, não ficávamos fomentando ideias. Agora, é o contrário. Estamos sempre atrás de bons projetos, de bons roteiristas.” No dia 24, estreia no GNT a primeira temporada da série “Lili, a Ex”, baseada nos quadrinhos de Caco Galhardo, produzida pela O2 e uma das apostas da temporada. A jovem Lili (Maria Casadevall), com muito humor e certo grau de loucura, atormenta a vida do ex-marido, Reginaldo (Felipe Rocha).

“Em termos de adequação à lei, não houve impacto, já que o investimento do GNT sempre foi na produção nacional. Com isso, o canal não precisou fazer nenhuma alteração na sua grade de programação”, diz Mariana Novaes, gerente de marketing do canal. “Seguimos o caminho da produção nacional e da produção independente há mais de 20 anos e esse sempre foi o nosso diferencial.” No entanto, Mariana afirma que é inegável o aquecimento do mercado, com mais profissionais e mais projetos. “Estamos todos aprendendo na prática. É por isso também que, em março, lançamos um site para melhorar o fluxo de recebimento de projetos. O volume é grande e buscamos estreitar a relação com o mercado independente.” O site é globosat.com.br/produtoras.

Desde a aprovação da lei, a Associação Brasileira dos Produtores Independentes de Televisão (ABPITV) registrou aumento de 200% no número de associados. A lei contaminou o mercado audiovisual como um todo, diz Marco Altberg, presidente da entidade. A Quanta, maior empresa de locação de equipamentos e estúdios do país, há dois anos registra expansão anual de cerca de 10% no uso de seus estúdios, localizados em São Paulo. Hoje, as séries dominam o cenário, mas antes da lei boa parte do movimento cabia à publicidade. “Enquanto as equipes de um comercial ficam de 5 a 15 dias no estúdio, as de séries de TV locam o espaço por pelo menos três meses”, conta José Alexandre Silva Filho, gerente-comercial da Quanta. “Com isso, tem sido cada vez mais difícil agendar estúdios aqui.”

Nesses dois anos da adoção do novo marco regulatório, porém, não foram poucos os nós surgidos no enredo. “Estamos cooperando com a Ancine no sentido de diminuir os atritos provocados pela inevitável introdução de requisitos burocráticos”, diz Pecegueiro. A TV paga agora entrou na fase das correções de rumo. As produtoras independentes, inicialmente eufóricas com a possibilidade de emplacar produtos na TV por assinatura, mostram-se mais cautelosas. As programadoras e operadoras cumprem a cota e criam estruturas para moldar-se às novas exigências do mercado. “Tivemos o tempo dos conflitos, das altas temperaturas, mas a lei foi construída ao longo de cinco anos e, quando nasceu, nasceu com uma alta taxa de consenso”, diz Manoel Rangel, diretor-presidente da Agência Nacional de Cinema (Ancine). “Foi visível o esforço das programadoras para cumpri-la.”

Apesar de, durante os embates em torno da lei, alguns canais terem dito que não se responsabilizavam pelo conteúdo exibido, o tempo mostrou que, por mais difícil que seja cumprir a cota, não dá para correr riscos de perder espectadores e anunciantes. “Pelo que vejo, os canais não têm levado ao ar produtos que não sejam condizentes com a qualidade e as características da programação”, observa Denise Gomes, sócia da BossaNovaFilms, produtora de programas como “3 Teresas” (GNT) e “Tabu Brasil” (Nat Geo). “Mesmo quem não tem condições de adquirir produtos ‘premium’ busca qualidade dentro de seus padrões.”

Rogério Gallo, que tem de preencher a grade de seis canais – TNT, Warner Channel, Space, TCM e TBS –, mostra o outro lado da moeda: “Já levamos ao ar programas que, não fosse a necessidade de cumprir cota, não teriam entrado”. O executivo garante, porém, que isso não o aflige. Fazendo coro com boa parte do setor, ele afirma estar seguro de que da quantidade sairá a qualidade: “Estamos passando por um processo natural de depuração”.

Investimento em produção

Se, inicialmente, se bateu muito na tecla da qualidade, hoje os problemas que realmente inquietam programadoras e produtoras são outros. Uma queixa comum diz respeito à demora na liberação dos recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), fonte de financiamento governamental.

No fim do ano passado, a ministra da Cultura, Marta Suplicy, anunciou que o FSA tornaria disponíveis R$ 400 milhões para o audiovisual. Mas produtoras e programadoras são unânimes em dizer que, até conseguir receber o dinheiro, enfrentam um calvário. “Os prazos da burocracia são incrivelmente longos para os prazos da televisão. A TV exige uma agilidade muito grande”, diz Denise. São comuns os casos de produtoras que tiveram de usar o próprio capital de giro para adiantar os recursos do fundo. Outras, menores, acabam, simplesmente, não cumprindo os prazos estabelecidos com os canais – para pleitear os recursos, o produtor precisa ter um acordo de exibição.

O diretor-presidente da Ancine não nega a demora, mas afirma que, apesar de a agência se esforçar para tornar os trâmites mais eficazes, a liberação de recursos públicos deve obedecer a um rito. “O fundo é uma forma de ajudar o setor e, de fato, boa parte do que está no ar foi produzido com esse dinheiro. Vamos procurar melhorar, mas não vejo como negativo que as produtoras adiantem recursos. Isso faz parte da vida empresarial”, assinala. “Também esperamos que o setor utilize mais recursos próprios nas produções.”

Oscar Simões, presidente da Associação Brasileira de Televisão por Assinatura (Abta) pondera, porém, que o volume de recursos que as programadoras têm para investir está diretamente ligado ao valor que o assinante paga. “É o dinheiro das assinaturas que alimenta a cadeia, e os preços não podem subir mais”, afirma. Diferentemente da TV aberta, cuja fonte de receita é, primordialmente, a publicidade, na TV fechada as fontes são várias: mensalidade, serviços de banda larga e telefonia e, em menor proporção, a publicidade. “Esse é um negócio de escala e de capital intensivo”, observa Simões. “A estrutura toda é muito cara, desde a infraestrutura até o investimento para atrair novos assinantes. A grande discussão é como equacionar quantidade, custo e qualidade.”

Michela Giorelli, vice-presidente de produção e desenvolvimento da Discovery Networks Latin America, defende a ideia de que chegou o momento de avaliar como tornar a lei economicamente sustentável. “Hoje, para os canais de grande distribuição, já é oneroso produzir no volume exigido”, nota. “Para canais menores e com gêneros mais específicos, como é o caso do Investigação Discovery, a oferta limitada de conteúdo cria uma grande pressão econômica para o cumprimento da cota.”

As produtoras, por sua vez, ficam espremidas entre os custos de produção e aquilo que os canais podem, ou estão dispostos a, pagar. “Há dois anos, colocamos o pé no acelerador, mas agora estamos mais cautelosos”, diz Gil Ribeiro, diretor-geral da Conspiração Filmes, atualmente com sete séries em produção. Entre elas, “A Segunda Vez”, série baseada no livro “A Segunda Vez Que Te Conheci”, de Marcelo Rubens Paiva, que será exibida no Multishow. “O mercado virou muito comprador, ou seja, há grande demanda, e a mão de obra e os custos estão inflacionados.”

Enquanto produtoras e canais insistem que a mão de obra ficou cara e pedem que o governo invista na formação de profissionais – de roteiristas a técnicos –, quem está no lado da criação tem outra versão da história. Na visão do roteirista Newton Cannito – “9MM: São Paulo”, “Cidade dos Homens” –, a despeito do boom, o setor passa por um processo de precarização do trabalho. “Produtoras querem roteiristas, mas não querem pagar muito; querem pessoas que trabalhem, mas não querem dar poder criativo para elas”, afirma. “Quem aceita isso são, geralmente, os jovens, e nem sempre o resultado é bom.”

Outra dificuldade enfrentada pelas programadoras é que, em um ano, o produto perde a validade, ou seja, não serve mais para o cumprimento de cota. “Você paga caro pela produção e, depois, só pode exibir durante um ano? Isso é um tiro pela culatra, porque tende a fazer que os canais reprisem ao máximo, durante um ano, aquilo que produziram”, reclama Gallo.

A exigência é mais complicada para os chamados canais brasileiros de espaço qualificado, como o Canal Brasil e o Curta. Para entrar nessa categoria, um canal precisa exibir, no mínimo, 12 horas diárias de produção nacional. A Ancine garante estar estudando a flexibilização da exigência. “É o momento oportuno para os primeiros ajustes no regulamento. Ao longo dos próximos dois meses, tomaremos medidas pontuais”, informa Rangel.

Parte do mercado se mobiliza também para que formatos internacionais produzidos no Brasil, por brasileiros, sejam aceitos, ao menos parcialmente, para cumprimento de cota. “Entendemos que as experiências compartilhadas com produtores internacionais ajudam no desenvolvimento do mercado audiovisual local e deveriam ser levadas em consideração”, diz Michela, da Discovery Networks.

Um dos objetivos da lei é, porém, estimular o país a desenvolver formatos próprios. A paulistana Moonshot, que produz, aqui, séries importadas como “Sessão de Terapia” (GNT) e “O Desafio da Beleza” (GNT), é uma das que têm investido no desenvolvimento de ideias originais. Exemplo disso é o “reality” “Cozinheiros em Ação” (GNT), comandado por Olivier Anquier. “Se não fosse a exigência legal, não sei se os canais aceitariam um formato novo, já que se trata de uma aposta mais arriscada e mais cara que importar algo que já foi testado em outro país”, diz Roberto d’Avila, diretor da Moonshot.

Todos os países que se tornaram exportadores de programas, como Argentina, Israel e Inglaterra, têm arranjos produtivos locais que permitem isso, lembra D’Avila. “As produtoras brasileiras só vão reverter o jogo se, ao invés de só comprar, passarem a vender ideias e viver também da propriedade intelectual.”

A mesma lógica de fortalecimento das empresas nacionais está por trás da exigência de que os brasileiros sejam os detentores dos direitos patrimoniais das obras que cumprem cota. A regra faz, entretanto, que os canais se perguntem se vale a pena colocar recursos em projetos sobre os quais não têm o direito de distribuição em outros países. A resposta, até agora, tem sido não.

Em meio a queixas, perguntas e tropeços, das dez séries mais vistas na TV por assinatura, em 2013, cinco são brasileiras. Cabe observar, porém, que o canal que mais emplacou sucessos foi o Multishow, pertencente à Globosat – cuja estrutura de produção nacional é anterior à obrigatoriedade.

Entre as campeãs de audiência estão “Vai Que Cola”, “Cilada”, “Uma Rua sem Vergonha” e “Adorável Psicose”. E coube a uma produção nacional, a comédia “Minha Mãe É Uma Peça” (2013), o primeiro lugar no ranking de filmes da TV fechada. A maior presença do cinema brasileiro na programação dos canais pagos é, aliás, uma das consequências mais visíveis da lei para o espectador.

“A lei facilitou a venda e melhorou as condições de negociação dos nossos longas-metragens”, relata Giba de Assis Brasil. “Apesar de algumas restrições, uma vez que há contratos de distribuição com Columbia, Fox e outras empresas, nossos filmes nunca foram tão vistos como agora. Chegamos a receber reclamações do tipo todo dia passa ‘O Homem Que Copiava’ [de Jorge Furtado] em algum canal.”

“A compra de acervos de filmes brasileiros foi realmente grande”, afirma Débora Ivanov, sócia da Gullane Filmes. “Além disso, alguns canais, como HBO e Telecine, estão investindo na produção de longas-metragens.” Outro efeito colateral positivo apontado por Débora é que a televisão aberta – que historicamente opta pela produção própria – passou a dar mais espaço para os independentes. Há 15 anos, quando surgiu, a Gullane tocava três projetos. Hoje, tem 35 em andamento. E não se trata de exceção.

“Curva de aprendizagem”

Outra novidade que a lei impôs à paisagem audiovisual foi o surgimento de novos canais. A cota para brasileiros fez que canais que não conseguiam entrar nos pacotes básicos das operadoras passassem a ser carregados por diferentes empresas.

Exemplo disso é o Woohoo, que, quando nasceu, em 2006, tinha 6 mil assinantes. A partir da Lei nº 12.485, passou a ser distribuído por Net, Sky, GVT, Oi, Vivo e Claro. Soma, atualmente, 12,5 milhões de assinantes. “A cota para canais brasileiros e a entrada das teles no setor foram vitais para que atingíssemos esse tamanho”, diz Antonio Ricardo, criador do canal de surfe, skate e comportamento.

A mesma lei que propiciou o salto ao canal lhe impôs, porém, uma limitação. No ano passado, para manter-se sob a rubrica de “superbrasileiro” – na classificação da Ancine, existem quadro gradações para canais brasileiros –, o Woohoo teve de abrir mão do acordo que mantinha, desde a origem, com a programadora internacional Turner.

O que ocorreu com o Woohoo é fruto dos limites impostos à propriedade cruzada, que impedem as prestadoras de serviços de telecomunicações de serem produtoras ou programadoras de conteúdos locais. Em maio, a Sky foi autuada pela Ancine por descumprimento da lei. Segundo a agência, a empresa estaria atuando irregularmente como programadora por meio do canal Sports+. Procurada pelo Valor, a Sky informou, por meio da assessoria de imprensa, que não se manifestaria sobre o assunto.

Apesar de haver arestas a aparar, é indiscutível que a lei não só “pegou” – para usar a terminologia tão tipicamente brasileira – como teve efeitos visíveis para o mercado e os espectadores. E, daqui para a frente, o que esperar? “O desafio é que, cumprida essa curva de aprendizagem, todo o esforço gere uma indústria audiovisual forte que seja de interesse do assinante, que é quem paga a conta”, diz Simões, da Abta. “A gente espera que, no futuro, alguém assine um pacote para poder ver séries brasileiras.”

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Ana Paula Sousa, para o Valor Econômico