Há pelo menos duas opiniões – por razões diametralmente opostas – a cerca do aborto. A primeira defende a prática alegando que a mulher é um ser livre e tem o direito da escolha, principalmente quando envolve a maternidade. O corpo é dela e ponto. A religião, a família, o parceiro e a sociedade não devem opinar sobre a decisão. A segunda, por questões éticas, religiosas ou científicas, diz ser contra o método porque a decisão não cabe ser feita exclusivamente pela mulher, mas também a vida de mais um ser humano. Por razões divinas, dizem, o feto ou bebê tem direito de viver e ser amado. A liberdade de um não pode prejudicar o direito do outro e ponto.
Concordando ou não, legalizando ou não, o aborto sempre existiu e sempre existirá. No Brasil, cerca de um milhão de mulheres abortam por ano e, dentre esse número, ao menos 250 mil sofrem complicações em abortos clandestinos, decorrentes da prática malfeita em locais sem condições de higiene ou segurança, o que leva a assumir no ranking a quarta posição em causa de morte materna, segundo o Ministério da Saúde.
O assustador é que todas essas mulheres que encaram o aborto clandestino são pobres, podem ser mocinhas ou vilãs. Geralmente recorrem a métodos arriscados, como a utilização de remédios e objetos pontiagudos. Algumas sentem dores inimagináveis e sangram até a morte. Se sobrevivem, são algemadas, detidas e interrogadas porque, de acordo com o código penal, abortar no país é crime previsto no Código Penal Brasileiro, datado de 1940. O ato só é permitido em casos de gestação resultante de estupro, gestação de anencéfalos e quando há risco de vida da mãe. Qualquer coisa além disso, nas entrelinhas do Código Penal, é considerado capricho ou injustiça.
Enquanto todas essas questões de interesse social gritam na cabeça dos brasileiros (sobretudo brasileiras), o eco não parece alcançar a telenovela, grande formadora de opinião. A personagem de Isis Valverde, a Sandra, de Boogie Oogie (Globo, 18h), conheceu o personagem de Marco Pigossi, o Rafael, e, depois de inúmeros empecilhos, finalmente ficou numa boa com o cara. Só que semana passada, no auge do conto de fadas, ela descobre que está grávida do seu noivo que morreu em um acidente aéreo, no começo da trama.
Em nenhum diálogo, em nenhum ataque de desespero, sequer passou pela cabeça da mocinha não ter a criança. Sequer foi cogitado um aborto, tão praticado na década de 1970 e 80 quando se passa a novela, período em que, segundo o Ministério da Saúde, estima-se que quatro milhões de abortos foram feitos por ano, porque os métodos anticoncepcionais eram poucos ou falhos e a disseminação no país de políticas de planejamento familiar era precária.
Em Geração Brasil (Globo, 19h), a personagem de Taís Araújo, a jornalista Verônica, decidida a investigar a vida de Jonas (Murilo Benício) para escrever uma biografia não autorizada dele, acaba se envolvendo e se apaixonando pelo milionário, até então casado. Separados pelos bons e velhos truques do folhetim, eis que a moça, agora sozinha, é surpreendida pelo resultado da gravidez. Por lá também um aborto sequer passou pela cabeça da personagem, ainda que por alguns segundos após a notícia.
É claro que em ambas as tramas a narrativa está em jogo. Sandra e Verônica precisam dessas benditas crianças para efervescer seus folhetins. Mas o problema está justamente aí. A gravidez nas novelas é empurrada como desculpa para conflitos entre mocinhos e vilões e, quando isso acontece, nada pode ser feito a não ser o parto. A decisão do aborto na ficção não existe, contrariando os dados do Ministério da Saúde no país onde essas obras são representadas. Já o aborto espontâneo vai permear sempre. É mais fácil pôr culpa no destino do que na consciência de uma personagem que será traduzida pelo telespectador.
Telenovela se molda ao público conservador
Embora nos tempos de agora haja a preocupação de se levar temas contemporâneos para a TV, principalmente sobre questões de sexo e sexualidade, a telenovela se faz dúbia: ora se comporta de maneira moderna, ora se comporta de maneira arcaica, devido à campanha delimitada contra tudo o que representa valores que foram preservados por séculos pelas sociedades – desde as mais primitivas até o moralismo que se conserva nos dias de hoje – mundo afora.
O gênero telenovela pode falar de tudo: alcoolismo, violência doméstica, fornicação, adultério, corrupção, etc, o público aceita. Mas aborto nem pensar. A mocinha pode ser reduzida a um monte de lágrimas, ser humilhada, sequestrada, enganada, mas aborto, sempre sinônimo de crime, nunca. Vilãs podem porque elas são mal vistas e vão pagar no final das contas.
Amor à Vida (2013), com seu hospital como cenário, trouxe o assunto superficialmente, sem criar relação intimista entre a personagem abordada com o espectador, tal qual aconteceu em Saramandaia (2013). Ambas as novelas não fizeram refletir se o bom comportamento seria aquele bem-visto pelos outros ou aquele que faz o ser humano se sentir livre. Não permitiram o espectador melhorar ou até mesmo mudar sua opinião, seja ela qual for. As que foram e as que estão no ar não mostram a luta pelos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres e a luta para que nenhuma delas morra por morte materna. Se é um problema de pressão na alta cúpula da emissora, desleixo ou falta de interesse dos autores sobre o tema, ninguém sabe.
Mas dizem que o autor Manoel Carlos entende da alma feminina. Há pouco tempo, na novela Em família, o autor balanceou opinião. A personagem de Jéssica Alves, empregada da personagem de Vanessa Gerbelli, confessou ter feito três abortos e não ter se arrependido. Alegou ser jovem e não ter condições financeiras para ter filhos. Já a personagem da atriz Jéssica Barbosa, a Neidinha, foi vítima de estupro coletivo, engravidou, não cogitou o aborto e teve o bebê. Entretanto, nenhuma delas era protagonista.
Mas quando Maneco criou a Helena de Taís Araújo, ousou ao colocar na sinopse de Viver a Vida (2009) que, quando jovem, a protagonista havia feito um aborto em nome da carreira de modelo. Condiz com a realidade. Sofisticada, bonita e rica, foi massacrada pelos telespectadores. Não por conta desses adjetivos ou pela cor da pele, mas porque o público, sempre intervindo com seus julgamentos, considerou Helena uma criminosa, uma espécie de vilã mascarada de mocinha.
Se o amor entre pessoas do mesmo sexo, tais quais seus conflitos, já foram absorvidos pelos folhetins, a questão do aborto ainda é tabu inquebrável na teledramaturgia. Para parcela do telespectador, aborto é palavrão, é clandestino, é feio, é coisa de puta, é feito por almas femininas sem sentimento. Se a mocinha ou qualquer personagem de bom caráter ousa pensar no assunto, coitada, é demonizada sem redenção.
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Murilo Melo é jornalista