O filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek, no trecho final de seu discurso aos manifestantes do movimento Ocuppy Wall Street, afirma que “todos os principais termos que usamos para designar o conflito atual – ‘guerra ao terror’, ‘democracia e liberdade’, ‘direitos humanos’ etc. etc. – são termos falsos que mistificam nossa percepção da situação, em vez de permitir que pensemos nela (ver aqui, acesso em 5 out. 2014).
Articular o termo “falso” como agente mistificador da nossa percepção de situações contemporâneas é um ponto de partida relevante para abordar o tema da violência nos dias de hoje.
É notório como programas jornalísticos televisivos se caracterizam como verdadeiras máquinas produtoras de termos falsos, mistificando nossa percepção da violência em vez de permitir que se pense a sua complexidade. Tais programas contêm em seu discurso um teor hipócrita de indignação moral: apontam o quanto a violência é moralmente errada; dividem os cidadãos em bandidos e mocinhos; deixam de lado qualquer entendimento da violência que a inclua como algo humano, transformando aquele que parte para um ato violento em um “monstro”.
Um exemplo televisivo desta mistificação moral e “desumana” da violência é o programa Cidade Alerta (disponível aqui, acesso em 7 set. 2014), no qual o jornalista apresenta reportagens sobre ladrões, assassinos, pessoas “sem vergonha”, “monstros” que praticam atos violentos – muitas vezes, horrendos – contra uma vítima (pai, mãe, filho etc.) apresentada como o oposto destes “monstros”. O relato jornalístico é feito com um apelo exageradamente moral e emotivo. Abrindo mão de um discurso polissêmico e complexo, constrói lugares simplistas e estáticos para aqueles envolvidos na situação de violência: agressor e vítima. A humanidade do agressor é extirpada a tal ponto que não sobra nada além do termo “monstro”. Enquanto isso, a vítima só parece ser apresentada como uma personagem coadjuvante, usada para sustentar a atuação do agressor. Além do mais, as imagens, apresentadas “nua e cruamente”, exibindo inclusive cenas de assassinato completas, tendem a provocar no telespectador um alto nível de horror e/ou empatia com as vítimas, o que funciona como um engodo, impedindo que o espectador possa construir uma visão ampla do fenômeno.
Horror e estranhamento
A mídia jornalística, no geral, destaca o aspecto mais visível da violência, dando uma importância menor, ou nenhuma, ao aspecto estrutural da violência, isto é, àquilo que dá condições para que ela surja. A abordagem é direcionada para o ato em si, e não ao contexto ou conjuntura que estabelecem a possibilidade da violência ser produzida.
Estamos diante, se é que podemos nos expressar nestes termos, de uma indústria cultural da violência, que introduz uma lógica de entendimento cristalizada, moralizante e pouco complexa da realidade. Isto, seguindo Theodor Adorno [ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. “A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas” (1947). In: Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985], causa no espectador uma impossibilidade de fantasiar e pensar, adestrando-o a uma identificação imediata a uma suposta realidade. O sujeito responsável pelo ato violento, por exemplo, é transformado simplesmente em alguém que deve ser combatido sob o rótulo exclusivo da bandidagem, identificando o sujeito à sua ação.
Estes programas policiais, inclusive, ditam o que devemos sentir: no programa Cidade Alerta, por exemplo, as cenas de violência exibidas são acompanhadas de uma narrativa que suscita o horror. Em certo episódio é exibida uma matéria do caso de um homem que, diante das câmeras de segurança, assassina outro com uma serra elétrica (disponível aqui, acesso em 12 out. 2014). O acontecido é narrado pelo apresentador como um fato horrível, impensável, mas ainda assim televisionável, comercializável.
Da mesma maneira que é possível televisionar uma cena de grande violência, também o telespectador mantém-se ligado ao televisor enquanto uma pessoa é retalhada. O horror não o afasta da imagem; pelo contrário, é justamente o que o mantém conectado ao que está diante de seus olhos. O horror e a sensação de estranhamento experenciados pelo espectador são forjados, não surgem por acaso, como poderia ocorrer no dia-a-dia, mas são suscitados, produzidos e vendidos como mercadoria. Casos como os de Eloá, Isabela Nardoni e tantos outros, são transformados em performance.
Brigas, tiros, pancadaria
Estamos falando da produção de imagens da violência que envolvem direta ou indiretamente a destruição ou a tentativa de destruição do outro. A morte violenta, e ao que ela está ligada, é convocada para cada vez mais ocupar o imaginário social. O jornalista Eugênio Bucci, em uma análise feita no campo da comunicação, afirma que “ocorreu um relaxamento nos limites do jornalismo e do entretenimento mundial no que diz respeito à violência. A morte real tornou-se um recurso que requer menos cerimônia da parte dos programadores […]. A morte é um clipe publicitário, um must telejornalístico” [BUCCI, Eugênio. “Como a violência na TV alimenta a violência real da polícia”. In: BUCCI, Eugênio; KEHL, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre televisão. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 107-116].
O que aponta uma mudança em nossas ideias e sentimentos em relação à morte e ao que dela podemos extrair como representação: há uma tendência de se produzir imagens a partir daquilo que nos é mais horrível, ou seja, a morte e ao que a ela se relaciona. Aquilo que causa horror e estranhamento se expande e passa a ser convidado a fazer parte de nossa vida cotidiana como objeto de consumo.
Para Sigmund Freud, fundador da psicanálise, “existem muito mais meios de criar efeitos estranhos na ficção do que na vida real” e “muito daquilo que não é estranho em ficção […] sê-lo-ia na vida real [FREUD, Sigmund. “O estranho” (1919). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Volume XVII. Uma neurose infantil e outros trabalhos (1917-1918). Rio de Janeiro: Imago Editora, 2006]”. Contemporaneamente, a ficção está presente em cada lar através, principalmente, da televisão, máquina eficaz de criar efeitos estranhos. Um programa de televisão não transmite a realidade, não se trata da “verdade” dos fatos. O que é feito é uma construção ficcional sobre uma situação concreta (assassinato, por exemplo) retirada da realidade. Ora, a experiência que o sujeito tem diante do assassinato, que não é direta, mas mediada pela imagem televisionada, produz um ar de distanciamento, a ponto de dar a sensação de se estar assistindo a um trash movie.
Adaptamos nosso julgamento da violência à realidade imposta pelos programas policiais, jornais, revistas etc. Assistimos, assim, a uma construção direta de sentido acerca da violência feita pela TV à forma como é vivenciada no dia-a-dia. Eugênio Bucci exemplifica isto quando, retomando historicamente programas televisivos com as mesmas características do Cidade Alerta, afirma: “Desconfio que o sensacionalismo policial na televisão contribuiu para o aumento da brutalidade dentro da própria polícia. Ela se julgava adorada à medida que aparecia agindo, ou seja, batendo, prendendo e atirando. Quanto ao telespectador, queria dos programas exatamente isso: brigas, tiros, pancadaria” [BUCCI, Eugênio. “Como a violência na TV alimenta a violência real da polícia”. In: BUCCI, Eugênio; KEHL, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre televisão. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 107-116].
O pior em nós
Esta influência se dá através das imagens produzidas e vendidas como uma mercadoria destinada ao gozo do público. Não se trata de um produto comercializável como um tênis ou uma bolsa, não responde a uma necessidade, a princípio, objetivável. Ainda assim satisfaz uma necessidade humana, caso contrário não haveria público-consumidor tão interessado. Como disse Karl Marx, “que essas necessidades tenham a sua origem no estômago ou na fantasia, a sua natureza em nada altera a questão” [MARX, Karl. O capital. Volume 1. Disponível aqui, acesso em: 18 out. 2014].
Tais necessidades não são da ordem do estômago, mas sendo da ordem da fantasia vêm satisfazer demandas, digamos, inconscientes dos consumidores: a violência torna-se, então, um objeto com valor de gozo. Valor que, segundo Jacques Lacan, está no princípio da economia do consumo, mas, sobretudo, o de ser um objeto de gozo, possível de ser observado através do fascínio que um grande número de pessoas (ou a maioria das pessoas) possui pela violência em suas diversas formas de apresentação: filmes de horror, videogames de guerra, programas policiais televisivos, fotos de mortes reais compartilhadas em redes sociais…
Nada disso acontece sem consequências para o laço social, já que consumimos uma mercadoria que, sem pestanejar, afirmamos querer mantê-la afastada de nossa vida cotidiana. Mas, estamos encantados pelas imagens da violência como serpentes ao som da flauta do encantador. Este encantamento se caracteriza pelo horror e estranhamento que destacamos, pelo repúdio que sentimos diante do pior: roubo, estupro, assassinato. Horror que, reiteradamente, permitimo-nos sentir ao ligarmos a televisão nos programas policiais, abrirmos o jornal, acessarmos um site etc. Estamos petrificados diante da imagem da violência, ela própria nossa Medusa contemporânea.
Como deixar de olhar nos olhos desta figura fascinante que suscita o pior em nós, que nos convoca naquele ponto onde nos satisfazemos com aquilo que destrói o outro (e, consequentemente, a nós mesmos), aquilo que lutamos tanto, culturalmente, para manter fora do jogo social? É de comum acordo que queremos viver em paz, mas há algum desacordo de que desejamos o contrário?
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Gabriel Bartolomeu é psicólogo