A mídia comercial brasileira praticamente ignorou o assunto, mas já está no ar, 24 horas por dia, a TV Digital dos Trabalhadores (TVT), criada e mantida pelo Sindicato dos Metalúrgicos e dos Bancários. Cerimônia na sede do Sindicato dos Bancários em Santo André, no ABC paulista, marcou, na sexta-feira (6/3) a sua entrada em operação. A nova modalidade representa um salto na capacidade de transmissão da TVT, que passa de uma visualização de 400 mil espectadores para, potencialmente, cerca de 20 milhões de pessoas, na medida em que atinge a Grande São Paulo e estará disponível, via satélite, cabo e internet para todo o país. Isto só foi possível depois de quase cinco anos no ar e com a instalação de um novo transmissor, localizado na Avenida Paulista, no coração de São Paulo.
Durante a solenidade, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva destacou a importância e responsabilidade da emissora, “a primeira dos trabalhadores deste país” no que se refere a colocar no ar uma TV “mais interativa, participativa e viva” e que transmita de tudo, de “notícias a futebol”. Lula lembrou ainda que há várias décadas a TV comercial brasileira copia o que se faz na Europa e nos Estados Unidos e que está na hora de “termos uma TV que destaque, dê espaço e trabalhe com as pessoas do povo”, democratizando não só a presença e participação dos trabalhadores e da periferia na emissora, como contribuindo para democratizar a comunicação no Brasil.
De maneira bastante direta, Lula advertiu que a TVT, uma emissora educativa, não pode “repetir as tranqueiras que se vê” nas demais emissoras, lembrando que ela terá que competir e destacar-se em termos de qualidade e seriedade da informação, mas também em criatividade de seus programas e na busca por audiência e patrocínio. Desafios sem dúvida enormes, especialmente quando se sabe do monopólio que seis famílias exercem na radiodifusão comercial brasileira e de como este monopólio criou hábitos arraigados entre a população, inclusive entre os próprios trabalhadores.
Vanguarda do atraso
Se a mídia comercial procura ignorar esta nova realidade ou a vê com desprezo, algo como mais uma aberração que setores da esquerda pretendem implantar no Brasil, é preciso que se diga que TVs criadas e mantidas por trabalhadores, através de seus sindicatos e entidades representativas, foram e são uma realidade na Europa e nos Estados Unidos. Mais ainda: países da Europa e os Estados Unidos possuem não só emissoras de TV e rádio feitas e mantidas por trabalhadores, como igualmente possuem escolas, centros de formação e até universidades voltadas para o ensino e a pesquisa de temas ligados ao trabalho e à realidade da classe trabalhadora e dos setores marginalizados.
É importante destacar, por exemplo, o peso que estas iniciativas tiveram na Itália nos períodos em que a coalisão envolvendo socialistas e comunistas esteve no poder. Peso que impediu, por exemplo, que a sanha privativista dos governos neoliberais que assumiram o poder em diversos países europeus, a partir do final da década de 1970, liquidasse com a mídia pública e com estas iniciativas, mesmo elas passando a ser combatidas diuturnamente pelos novos donos do poder.
Autores como o historiador inglês Perry Anderson são críticos ao analisar a relação das esquerdas europeias com a indústria cultural, sobretudo no que se refere à passividade com que lidaram com os gigantes da comunicação de massa que entraram nestes países a partir do fim da década de 1970. Crítica que, sem dúvida, pode ser feita à esquerda brasileira que, até muito recentemente, não deu a devida importância a tema tão crucial. Não é por acaso que praticamente quase os países da América do Sul já possuem leis que regulam e democratizam a comunicação enquanto, no Brasil, as seis famílias continuam dando as cartas do que deve saber e como deve saber a população brasileira. Não é por acaso que o Brasil vem sendo citado como estando “na vanguarda do atraso” neste setor. Citação que, obviamente, a mídia comercial esconde do público.
A título de exemplo, a Ley de Medios da Argentina determina que os veículos de comunicação comerciais possam ter no máximo um terço das emissoras de rádio e TV do país, cabendo os outros dois terços, respectivamente, às emissoras comunitárias, sindicais e ligadas às universidades e à divulgação estatal. Foi a partir da aprovação desta lei, em 2009, que a Argentina passou a contar com um canal de TV Indígena e que a mídia popular e pública ganhou impulso.
Três décadas de lutas
Em seu discurso na solenidade de lançamento da TVT Digital, Lula fez questão de deixar claro para os presentes, inclusive para o atual ministro das Comunicações, Ricardo Berzoini, como alterar o quadro de monopólio não é tarefa simples e demanda muita persistência. Apesar da concessão para TVT ter sido obtida no final de 2010, ainda em seu governo, ele frisou que foram inúmeras as vezes em que os dirigentes do Sindicato dos Metalúrgicos estiveram com ele no Palácio do Planalto, fazendo a solicitação de um canal, saiam de lá com tudo acertado e, tempos depois, quando os encontrava, nada tinha avançado. Lula não disse isto abertamente, mas para quem conhece como funcionam os meandros envolvendo a concessão de canais no país, sabe o poder que têm os lobbies ligados à mídia comercial para atrasar e até inviabilizar o surgimento de emissoras que não sejam do seu interesse.
A luta dos metalúrgicos do ABC paulista em prol da concessão de um canal de televisão teve início em 1987, no governo de José Sarney. Como a história registra, Sarney, para garantir a ampliação de seu mandato para cinco anos, valeu-se da concessão de 1.028 emissoras de rádio e TV como moeda de troca em função de seus interesses. Este número equivalia a 30,9% de todas as concessões existentes no Brasil até o início do governo de Fernando Collor.
Na época, estas concessões foram destinadas, em sua esmagadora maioria, a instituições de fachada, comandadas por políticos, inclusive da própria família Sarney, sem que nenhuma coubesse aos setores genuinamente populares ou a um sindicato de trabalhadores. Este episódio foi estudado em profundidade por Santos & Caparelli (2005) e por Venício A. Lima (2007) que o batizaram como “coronelismo de tipo novo”. Vale dizer, os velhos coronéis do passado, donos de gado e gente, foram substituídos por novos coronéis, que comandam emissoras de rádio e TV em todos os quadrantes do país, utilizando-as como forma de extensão de seus poderes.
Apesar das promessas de Fernando Henrique Cardoso que, em seu governo, iria alterar radicalmente este cenário, não foi o que se verificou. Num primeiro momento, suas ações pareciam contemplar as reivindicações dos que lutavam pela democratização da comunicação no país, ao colocar fim na distribuição de concessões de emissoras comerciais. No entanto, ele deixou uma porta aberta para a negociação política que foi soberbamente aproveitada.
Maior visibilidade para a TV Brasil
Na época, o sistema de outorga para a radiodifusão, regulamentado pelo decreto 52.795, de 1963, foi alterado pelo decreto nº 2.108, de 1996, através do qual se estabeleceu a exigência de licitação para os interessados em executar o serviço de radiodifusão de sons e imagens, porém este mesmo decreto dispensou o processo licitatório para TVs e rádios com fins exclusivamente educativos. Para coroar o processo, uma portaria do Ministério das Comunicações autorizou a entregas de estações retransmissoras de TV (RTVS) sem a necessidade de aprovação pelo Congresso Nacional.
Até setembro de 1996 foram outorgadas 1.848 licenças de RTVs, das quais pelo menos 268 beneficiaram entidades controladas por 87 políticos (Lima & Caparelli, 2004). A generosidade de Fernando Henrique Cardoso coincidiu com a aprovação da emenda constitucional que permitiu a sua própria reeleição para a presidência da República. Ao longo de seus dois governos, além das 539 emissoras concedidas por licitação, ele autorizou 357 concessões “educativas” sem licitação. A maior parte desta distribuição ficou concentrada nos três anos em que o deputado federal Pimenta da Veiga (PSDB-MG) esteve à frente do ministério das Comunicações. Em entrevista à repórter Elvira Lobato, da Folha de S.Paulo, em 25/08/2002, Veiga admitiu que autorizou perto de 199 TVs educativas, sendo pelo menos 23 delas para políticos.
Nem Fernando Henrique nem seu ministro sofreram quaisquer sanções por liberar diversas autorizações, apesar da Constituição de 1988 determinar que cabe ao Congresso Nacional apreciar todos os atos do Poder Executivo, o que inclui a análise prévia da outorga ou renovação de concessões, permissão e autorização para serviços de radiodifusão.
Em 1995, foi aprovada a Lei nº 8.977, que regulamentou a utilização da TV a cabo no Brasil. A entrada em operação deste tipo de emissora paga aconteceu de forma tardia, quando comparado a outras partes do mundo. Essa lei foi importante, no entanto, porque além de possibilitar a participação da sociedade brasileira em sua discussão e elaboração, trouxe ganhos concretos para a sociedade. Em cada localidade onde está em operação o serviço de cabo, a empresa responsável tem a obrigação de disponibilizar, sem custo, o sinal de emissoras educativas e de interesse público.
Foi assim que emissoras como as TVs Câmara e Senado e a própria TVT puderam passar a ser assistidas por uma parcela da população. O problema é que os telespectadores que se valem do sistema de cabo ou satélite são em número infinitamente menor do que os que assistem às TVs comerciais abertas, que atingem a maioria esmagadora dos lares brasileiros. Daí a importância do novo transmissor da TVT que vai possibilitar que a emissora seja alcançada, em sinal aberto, pela população da Grande São Paulo, rompendo com o gueto a que as legitimas emissoras educativas e culturais foram confinadas.
A TVT vai manter a parceria com a TV Brasil, a emissora pública brasileira, mas se depender do que sugeriu Lula, vai procurar ir muito além do que está fazendo a TV Pública. Mesmo a TV Brasil tendo sido criada em 2007, em seu segundo governo, o ex-presidente não deixou de alfinetá-la. Em seu discurso na solenidade do dia 06/03, afirmou que “a TV Brasil ainda não desencantou”, acrescentando que “tenho até hoje esta frustração”. Indo além, explicou que esperava que a emissora “tivesse programação de qualidade e pudesse ser formadora de opinião pública”.
Realmente a TV Brasil, que tem como missão estar à frente e articular a rede de emissoras não comerciais no país, vem deixando a desejar. No primeiro governo Dilma Rousseff, seus avanços foram mínimos e o que os setores comprometidos com a democratização da comunicação esperam é que este quadro seja alterado neste segundo mandato. Claro que as condições para a democratização da mídia no Brasil nunca foram e continuam não sendo adequadas. Ao contrário, o cenário conservador reinante no Congresso Nacional e a radicalização que toma conta de setores da sociedade indicam que leis comprometidas com estes avanços terão dificuldades para serem aprovadas.
Nada impede, no entanto, que o governo federal, valendo-se de suas prerrogativas, possa fortalecer e garantir maior visibilidade para a TV Brasil. Some-se a isso que está nas mãos deste mesmo governo, como fez Cristina Kirchner na Argentina, possibilitar que a TV pública brasileira se torne mais atrativa, com a introdução em sua grade de programação de telenovelas, minisséries e transmissão de jogos e campeonatos de futebol. Jogos para valer e não apenas campeonatos de várzea ou que não despertem muito interesse. Dito de outra forma, que tenha uma grade cada vez mais interativa, participativa e viva, como enfatizou o próprio Lula.
É preciso agir
Está nas mãos igualmente dos atuais governadores – pelo menos daqueles comprometidos com a democratização da comunicação – garantir que as emissoras educativas em seus estados tenham e cumpram iguais finalidades. É importante lembrar que nos últimos anos, a maioria destas emissoras teve sua função desvirtuada, com boa parte delas se transformando em TVs “chapa branca”, a serviço dos interesses político-eleitorais dos governadores de plantão. TV Minas e TV Cultura, de São Paulo, por exemplo, passaram por processos de desmonte, privatização e destruição de suas grades de programação que ainda parecem longe de ser alterado. Processo que se encontra em pleno andamento na TV Educativa do Paraná, onde o governador Beto Richa (PSDB) tem utilizado a emissora para fins puramente partidários, contribuindo para manipular a informação pública no que se refere aos graves problemas econômicos e enfrentados por aquele estado.
Diante deste quadro, é pertinente a pergunta: onde está a Anatel que não age diante destes problemas? Onde está o ministro das Comunicações, Ricardo Berzoini, que já se comprometeu, em nome da presidente Dilma, com a democratização da comunicação? Afinal, não passa de um sonho de uma noite de verão acreditar que o discurso raivoso e de ódio que a mídia comercial brasileira tem feito vá ser alterado por si só. Que o diga o panelaço dos mais ricos contra a presidente Dilma, durante seu discurso, no último domingo (08/06) estimulado e apoiado por esta mídia, mas divulgado para o conjunto da população brasileira como sendo o protesto legítimo de parcela expressiva da população.
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Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação da UFMG. Este artigo foi publicado no Blog Estação Liberdade