Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Sombrinha de Angélica e a pedagogia dos detalhes

O flagrante da expulsão da equipe do programa Estrelas (Rede Globo) do espaço da UniRio deixou escapar um microepisódio que provocou reação imediata nas redes sociais. O “detalhe” da imagem da sombrinha carregada por uma moça negra para abrigar a apresentadora Angélica tem força pedagógica, nos leva a refletir sobre os papeis subalternizados desempenhados em sua maioria por mulheres negras na estrutura ocupacional da indústria do entretenimento e da informação.

O valor das pequenas coisas

Thomas Piketty, em O capital do século XXI, livro que vem mudando substantivamente as formas de explicar (e entender) economia, apoia-se no cinema e na literatura (minhas duas paixões) para demonstrar como se tecem as relações desiguais, as profundas assimetrias inerentes ao capitalismo. De acordo com Piketty, “incorreríamos em grave erro se subestimássemos a importância dos conhecimentos intuitivos que cada um desenvolve sobre a distribuição da renda e do patrimônio de sua época, mesmo na ausência de uma estrutura teórica de análises estatísticas”.

Para o renomado autor, cinema e literatura, em particular os romances do século 19, carregam informações extremamente precisas sobre os padrões de vida e níveis de fortuna dos diferentes grupos sociais.Das estórias ficcionais de escritores mundialmente conhecidos, como Jane Austen e Balzac, o economista francês põe em cena a manifestação das desigualdades em escala abrangente, donde podemos concluir que Deus está no particular, mora nos detalhes, lembrando a expressão de Dostoiévski, para ficarmos no diapasão da literatura. O microcosmo, o pequeno quadro, pode ser revelador do grande quadro, de processos globalizantes.

Do grande ao pequeno quadro: sinais do tempo presente e pretérito

Um acontecimento insólito nessas últimas semanas foi alvo de contundentes comentários nas redes sociais, reverberando na imprensa. Trata-se de uma ocorrência que nos faz prestar atenção nos detalhes, assim como fez Piketty. Impedida de gravar cenas para o programa Estrelas na UniRio, onde estudantes ressoaram o jargão “O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”, Angélica foi flagrada sendo protegida do sol calcinante do Rio de Janeiro, aquele sol de juízo final, por uma sombrinha carregada por uma moça negra. A cena deu ocasião a paralelos com os tempos da escravidão, evocou as pinturas de Jean-Baptiste Debret. Do grande quadro – a expulsão da equipe do programa Estrelas da Universidade, a imagem arranhada da Rede Globo – escorregou-se para o pequeno quadro, o “mísero detalhe”, simbolizado pelo guarda-chuva e por quem o carrega.

O jornalista Tony Goes desdenhou a comparação e disse que só mesmo os radicais, os militantes do tribunal da internet, são capazes de bizarra analogia que provocou uma caça às bruxas desnecessária: “Ai que preguiça!”, desabafa Goes. Para ele, qualquer pessoa que entende minimamente de produções dessa natureza sabe o quanto elas mobilizam um conjunto de aparatos que envolve cuidados minuciosos principalmente quando se trata de “externas”. As(os) artistas não podem suar, a maquiagem tem que permanecer impecável, os equipamentos precisam ser preservados. Pinçando doFacebooktrecho de depoimento da atriz Mika Lins em solidariedade a Angélica, o jornalista pretende fechar questão sobre o episódio: “Não sou amiga da Angélica, mas não posso ser hipócrita: quando gravamos externa na Globo sempre tem uma equipe de produção que nos protege do sol ou da chuva enquanto esperamos para gravar. Isso para não derreter o make ou molhar cara, cabelo e figurino. Já tive alguém segurando a sombrinha para mim sem que essa pessoa estivesse em situação de humilhação e sem que eu a deixasse de tratar com respeito pela sua função exercida naquele momento. Segurando um guarda-chuva, me trazendo uma cadeira ou servindo um copo d´água”.

Em tom professoral, o jornalista nos dá mais uma lição: nada de enxergar racismo, reedição da escravidão onde apenas há execução de uma tarefa absolutamente necessária, dentro dos parâmetros normais da legislação trabalhista. A moça que carregava a sombrinha não é criada, mucama, escrava, mas uma profissional da equipe de produção do programa global; tampouco a apresentadora não é sinhazinha ou dondoca mimada que precisa de uma subalterna para carregar o instrumento de proteção. Dadas as explicações, assim, de forma linear e simples, Goes deplora a comparação (rica em seu minimalismo), avaliada por ele como esdrúxula, coisa de quem não tem o que fazer.

Como profissional e docente da área, sabemos dos aparatos que qualquer filmagem mobiliza. O problema não está na necessidade do aparato, mas nos lugares hierarquicamente racializados que se repetem na acomodação dos profissionais que estão atrás e à frente das câmeras. Uma mirada a qualquer backstage (camarim, coxia, tudo o que está atrás do palco ou da cena) nos permitirá observar que o universo daqueles que cuidam de quem precisa se manter impecável nas telas é majoritariamente negro ou não-branco: contrarregras, costureiras, camareiras, maquiadoras cozinheiras, assistentes de câmeras…

É aí que o contra-ataque de Tony Goes revela sua fragilidade para seguir o detalhe, pois não consegue enxergar a reiteração dos corpos que carregam o guarda-sol e dos que sob ele se abrigam. Na observação e percepção do mundo vivo, pulsante, o jornalista não nota, nem de longe, os nexos que se articulam neste “flagrante”. Isso, sim, dá preguiça. É nos rastros dessa repetição que podemos homologar analogias entre as imagens de agora, ilustrada na cena da gravação malograda do programa Estrela, e as do tempo pretérito, em que corpos de mulheres negras prestavam-se ao cuidado de mulheres e homens brancos.

Esses detalhes, “meros detalhes”, são atravessados como cortina de fumaça pela estrutura midiática brasileira. Há alguns anos atrás, quando completou cem anos, O Estado de S.Paulo (OESP) fez uma homenagem aos seus colaboradores. Na efeméride, o jornal agradecia aos homens brancos que, com seu intelecto, foram responsáveis pela construção de um jornalismo sério; aos homens negros reconheceu seu papel no empréstimo de seus músculos para o bom funcionamento das rotativas. Que homens negros sejam vistos como coisas, somente músculos, fragmentados em sua corporeidade, isso é “mero detalhe”.

Ao contrário do que pensa Tony Goes e muitos de seus colegas, essa monótona repetição nos convida a prestar atenção aos pormenores que tecem a vida presente como um continuum de um passado que não terminou, como disse o escritor americano William Faulkner.

Pedagogia dos detalhes: indícios para a imprensa

Nos sedimentos de um passado que insiste, incrustados nos detalhes, as constantes reguladoras da experiência escravocrata se mostram (quem cuida e quem é cuidado). Aprendemos que, para serem reconhecidos em sua importância social, os fatos devem passar pela verificação das regularidades, o que só é possível na diacronia das repetições. Os detalhes que se repetem são indício de algo que reclama por significação.

Não é à toa que atribuí à dinâmica dos detalhes um caráter pedagógico, pois considero que essas minúcias possuem uma diretriz orientadora de uma ação educativa, o que define a instituição pedagógica. Assim, a espacialidade do pedagógico dilata-se para além das fronteiras das fronteiras escolares na exata medida que as formas de educar, de orientar para o mundo, se estabelecem nas práticas cotidianas diversas. Vem desse fundamento uma forte motivação para fazermos das pequenas coisas ou dos pequenos enunciados, como disse Foucault, um recurso importante para entendermos a tessitura do mundo vivido. Como vimos, alguns profissionais da imprensa preferem ver nos detalhes algo desprovido de valor para a construção dos acontecimentos.

Não é raro ouvirmos queixas de professoras(es) – da educação básica ao ensino superior – relativas à carência de materiais atualizados sobre a vinculação entre racismo e escravidão. Assim como alguns jornalistas, esses profissionais também parecem atravessar os detalhes sobre os quais tropeçamos no nosso dia a dia como cortina de fumaça.

No ano da Marcha de Mulheres Negras, que denuncia o racismo e defende o bem-viver como valor essencial, é preciso que estejamos atentas a esses detalhes que acabam por normatizar a presença desse grupo racial em lugares subalternizados, ratificando um modo de operação do racismo e limitando as múltiplas formas do bem viver por onde se afirma o sujeito de direitos, num país que se quer republicano. Assim como os romances do século 19, sobre os quais se apoia Thomas Piketty, a sombrinha de Angélica tem, sim, muito a nos “dizer”, apresenta algumas cintilações sobre o grande quadro em que se pinta a face da Nação.

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Rosane Borges é jornalista, professora, coordenadora do curso de Especialização da FAM, integrante da Cojira-SP (Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial) e pós-doutoranda em comunicação pela USP