Embora a TV Cultura tenha os melhores índices de credibilidade entre as emissoras brasileiras, detenha a simpatia até de não espectadores e constitua um patrimônio afetivo de muitas gerações, a emissora pública está a perigo.
Perigo de desaparecer por falta de dinheiro, de compreensão de sua importância política e de instrumentos internos de inovação. Vive uma das piores crises de sua história.
Sua identidade jurídica e institucional é a de uma “fundação de direito privado, intelectual, administrativa e financeiramente independente, que administra emissoras públicas de comunicação de massa”. Entretanto, apresenta-se com ambiguidade perante tribunais, governos, credores e espectadores, ora como TV do governo, ora como autônoma, ora como repartição pública.
Fundação de direito privado, segundo todas as definições legais, é considerada fundação dependente, o que a submete a imposições da Procuradoria Geral do Estado, inclusive contra decisões judiciais de caráter trabalhista, como dissídios.
A fundação recebe, por lei que a criou, verbas orçamentarias do governo estadual, que, por serem insuficientes, obrigam-na a recorrer à venda de espaços publicitários, confundindo-se com as televisões do mercado.
Ao que tudo indica, a TV Cultura receberá por serviços prestados à Secretaria da Educação do estado de São Paulo R$ 8 milhões neste ano. Em 2013, foram R$ 58 milhões.
Legado maior
Ainda que por natureza e finalidades a TV Cultura deva ser equidistante do poder e do mercado, a emissora vive, paradoxalmente, a custa de ambos. Essa, como outras verdades, deve ser proclamada.
Embora não seja uma televisão comercial, a Cultura precisa de audiência, mas seus valores são outros. A televisão comercial vende audiência produzida pela indústria do entretenimento. A TV pública não vende audiência, vende conhecimento. Essa é a sua natureza.
A TV Cultura é o maior instrumento de comunicação de massa destinado à educação. Para que ela exerça a sua missão com propriedade, é preciso que governo, conselheiros, diretores, funcionários e espectadores acertemos os ponteiros.
O Conselho Curador da Cultura, presidido por Belizário Santos Junior, ao propor e perseguir um planejamento estratégico, está em busca disso. Para tanto, basta promover uma reflexão ampla e aberta, além da coragem para superar os tabus e não ter medo da verdade.
A televisão pública precisa de independência, pois deve manter a necessária equidistância do poder do mercado e do poder político. Mas, para isso, precisa de dinheiro.
Quando eu presidia a Cultura, o saudoso publisher desta Folha Octavio Frias de Oliveira, o seu Frias, disse-me em um dos encontros habituais que mantínhamos na sede do jornal, utilizando-se do português que costumava adotar com os amigos: “Se você não tiver independência financeira na TV Cultura, nunca terá autonomia e muito menos independência.”
Eu, então, perguntava-me: “Como sobreviver sem o governo e sem o mercado publicitário?” Pensar a fundação como uma causa, responde o professor Eugênio Bucci. Não se investe em retorno, mas numa causa. Só há um caminho, quando a sociedade estiver convencida disso. Ela deve pagar a conta porque a TV Cultura é um serviço de utilidade pública sem ser governo.
As melhores emissoras públicas de televisão do mundo são financiadas por taxas pagas pelos cidadãos, como a BBC no Reino Unido. São fiscalizadas pela sociedade a partir do seu Parlamento.
Em São Paulo, quando a Assembleia Legislativa aprovou um decreto de lei enviado pelo então governador Mario Covas, que concedia uma taxa permanente para a TV Cultura, alguns meios de comunicação privados bombardearam a iniciativa, inviabilizando politicamente a lei, que foi retirada da pauta.
A televisão pública exige governança competente, com administradores de alto nível técnico, intelectual e profissional. O Conselho Curador deve representar a sociedade e fiscalizar com rigor a missão da Fundação Padre Anchieta.
Dentre as TVs públicas na América Latina, o maior legado é o da Cultura, de São Paulo. Esse legado permite que ela seja uma alternativa às televisões de mercado, inovando o formato e o conteúdo de sua programação, sem pretender imitar um modelo de negócio e de inteligência que já está superado até mesmo para as televisões comerciais.
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Jorge da Cunha Lima é escritor e jornalista, vice-presidente do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta e colunista do portal iG