O debate sobre a criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav), que até agora mantinha-se pesadamente na esfera do cinema e da liberdade de expressão, migrou de uma só vez na semana passada para a televisão.
Não se esperava outra coisa. Para alguns, é surpreendente que isso não tivesse acontecido antes. Para outros, as críticas ao projeto (levadas ao ar tão logo ele foi anunciado nos noticiários principais das redes de televisão, Globo, Record e Band, entre elas) já era parte de uma estratégia que consistia em colocar o pensamento das emissoras na voz de seus principais comentaristas ou apresentadores – Boris Casoy, Arnaldo Jabor, Joelmir Betting e outros – para evitar o desgaste prematuro com manifestações públicas oficiais.
Mas na quinta-feira (2/9), o vice-presidente das Organizações Globo, João Roberto Marinho, publicou na seção ‘Tendências/Debates’, da Folha de S.Paulo, a expressão do seu pensamento no artigo ‘A TV não é o problema’. João Roberto repetiu o discurso que a Globo vem utilizando desde que lançou sua campanha de valorização da nacionalização do conteúdo promovido pela emissora, sem acrescentar muita novidade a ele. Lembrou que, na Globo, ‘95% do que é exibido em horário nobre é feito por brasileiros e para brasileiros, sem os chamados enlatados que até 20 anos atrás inundavam nossas telas’. E garantiu que ‘esse modelo de produção conseguiu duas vitórias: é graças a ele que o Brasil pode ver os brasis e é graças a ele que o mundo pode ver o Brasil’.
Expressão da verdade
É emblemático o fato de um dos maiores acionistas das Organizações Globo ter escolhido a Folha e não um de seus próprios jornais para publicar o artigo. Isso indica uma clara intenção de levar a discussão para o campo conceitual e não simplesmente defender posições corporativas – ainda que seu texto se detenha no exemplo da própria Rede Globo.
Mais emblemático ainda é o fato de, três dias depois, no domingo (5/9), a mesma Folha ter publicado, de forma particularmente incisiva, a manifestação das demais emissoras (‘Redes se unem contra agência de cinema’). As redes, no caso, são o SBT, Record, Band e Rede TV!, que estão criando uma nova associação de emissoras de TV para se opor à Abert (que segundo essas redes representa apenas os interesses da Globo) e que já tem, segundo a matéria, ‘sua primeira batalha definida: lutar contra o anteprojeto de lei que cria a Ancinav’. Os argumentos se concentram na proposta de taxação de 4% sobre a receita publicitária – o que, segundo Dennis Munhoz, presidente da Record, ‘não dá pra suportar’.
Como a própria Folha identificou com acerto, bom ou mau o projeto da Ancinav conseguiu pelo menos unir as televisões, ainda que por meio de associações diferentes. Tanto o que João Roberto Marinho quanto Dennis Munhoz estão dizendo é a expressão da verdade. A Globo produz a maior parte do que exibe no horário nobre. E as emissoras de TV não têm como suportar uma carga tributária de mais 4%. Entretanto, vale a pena procurar entender se são esses os pontos que estão em questão.
Questão conceitual
Os índices de nacionalização da produção conseguidos pela Globo são mesmo invejáveis. Tão invejáveis que deveriam ser perseguidos pelas outras empresas. Se a Globo, com tanta produção nacional, tem quase 70% do share de audiência e 80% do bolo publicitário, o que impede que ela seja imitada? A resposta se esconde num sofisma primário: nacionalização não é tudo; a programação da Globo pode ser meritória, mas tecnicamente a mais torpe das produções levadas ao ar pela pior das redes de TV no Brasil também fala português.
O que há de pior na televisão brasileira – por exemplo, programas de auditório que agridem os princípios mais elementares de respeito ao cidadão – também é brasileiro. Depreende-se daí que embora o discurso de Marinho não seja inverídico, ele não é suficiente para que se entenda que aos altos índices de nacionalização há que estar agregados também índices pelo menos razoáveis de qualidade.
A boa notícia é que essa qualidade decorre em grande parte da diversificação (quando não dos mecanismos de produção, pelo menos das estratégias de criação), que antes de ser preconizada pelo projeto da Ancinav é exigida pelo artigo 221 da Constituição. Da qualidade decorrem audiência e faturamento – e quem mais sabe disso é justamente quem detém mais faturamento e audiência no país. Seria tão surpreendente que alguém se voltasse contra isso quanto alguém que se pusesse a favor da fome. Mas a verdade é que a televisão comercial brasileira tem investido no monolitismo criativo na razão direta em que se depara com os baixos resultados de qualidade, audiência e faturamento.
Talvez o que exista por trás dessa aparente contradição seja o clássico temor pelas mudanças, tão entranhado na televisão brasileira. A Globo pode sustentar que promove essa diversificação dentro da própria casa. Outros talvez não tenham essa possibilidade. Mas que a diversificação da produção é um elemento encorajador da qualidade e do desempenho comercial do produto televisivo, disso não há como ter dúvida.
A questão é portanto menos técnica do que conceitual. Os que sustentam os 4% afirmam que isso não é taxação, mas uma forma de promover compulsoriamente a diversificação que poderá melhorar a televisão. O dinheiro retornaria à TV em forma de produtos melhores e mais competitivos. As emissoras podem argumentar que cabe às próprias dizer o que é melhor e mais competitivo para elas, assim como dizer onde investir o seu dinheiro. (Os 4% são tecnicamente pagos pelos anunciantes, mas sabe-se que eles obterão das emissoras esse repasse.). Isso é verdade, mas não custa nada avaliar se a legislação, antes de querer impor alguma coisa a alguém, é capaz de ajudá-las a tomar as melhores decisões.
Espíritos desarmados
O presidente da Record está certo: as emissoras não têm como suportar uma taxação de mais 4%. Talvez valesse a pena para toda a televisão, no entanto, destinar uma parte dos seus recursos (quem sabe 4% do seu faturamento, um pouco menos ou um pouco mais) para investir em pesquisa de programação, em novos modelos e em novos mecanismos de produção que acabassem por lhes render um produto melhor, mais nobre e mais competitivo.
Na prática elas já têm feito isso. A Folha de segunda-feira (6/9) noticia, por exemplo, que a Band está buscando em Buenos Aires modelos de produção terceirizada que possam reduzir o custo de teledramaturgia. Se isso puder ser encontrado não apenas na capital da Argentina, mas em qualquer cidade brasileira, e ainda por cima vier a contar com incentivos fiscais para os anunciantes, tanto melhor. No fundo, pode ser muito parecido o que as emissoras estão procurando e o que a essência do projeto está propondo.
As televisões movimentam cerca de 6 bilhões de reais por ano, incomparavelmente mais do que o cinema. O setor das telecomunicações movimenta quatro vezes mais do que a televisão – e ainda não começou a se manifestar sobre a regulação que detém sobre a atividade televisiva e sobre a questão do conteúdo para telefonia móvel.
O debate vai ser longo e pode ser também penoso. O Mininstério da Cultura tem se preparado para isso. Na semana passada, não houve um só dia em que o ministro Gilberto Gil não aparecesse em depoimentos e artigos em todos os grandes jornais brasileiros. No domingo (5/9), compareceu com longas entrevistas sobre o projeto da sua pasta (com absoluto destaque para o da Ancinav) no Globo e na CartaCapital. Mas o fato é que só com espíritos desarmados esse debate poderá ser produtivo.
A base de todo o projeto da Ancinav está na observação de que as mídias estão convergindo e com elas o seu conteúdo. Não será de todo estranho que haja também convergência de propósitos entre o Estado e a atividade produtiva.