A complicada tramitação do Projeto de Lei n° 29, de 2007, na Câmara dos Deputados, dá uma boa medida do que pode vir a ser o andamento de um novo marco legal para a radiodifusão no Congresso Nacional, quando e se este for proposto. O PL-29, que cria um novo marco legal para a televisão por assinatura, não chega a mudar a estrutura do sistema de comunicações brasileiro, como faria uma eventual nova lei para a radiodifusão – o que, espera-se, seja o principal resultado da Conferência Nacional de Comunicação, realizada entre os dias 14 e 17 de dezembro. Porém, o novo marco legal da TV paga mexe com poderosos interesses econômicos e, por isso, teve uma lenta e imbricada tramitação nos últimos dois anos e dez meses, que culminou com a aprovação do projeto na Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara, no dia 2 de dezembro.
O PL-29 unifica em um só texto as diretrizes legais para a televisão paga brasileira, hoje regulamentada por diferentes instrumentos normativos, conforme a tecnologia de distribuição: TV a cabo, Serviço de Distribuição de Canais Multiponto Multicanal (MMDS), Serviço de Distribuição de sinais de Televisão e de Áudio por Assinatura via Satélite (DTH) e Serviço Especial de Televisão por Assinatura (TVA). Com o novo marco legal, as regras serão as mesmas para todas as tecnologias, e não haverá mais restrições para a participação de capital estrangeiro e para a participação das concessionárias de telefonia fixa local (STFC) no mercado de TV a cabo, conforme interpretação consolidada hoje da combinação da Lei do Cabo, de 1995, e dos contratos de concessão de STFC.
A idéia – contida no PL-29 original, de autoria do deputado Paulo Bornhausen (DEM-SC), e mantida no substitutivo do deputado Paulo Henrique Lustosa (PMDB-CE) aprovado na CCTCI – é abrir o mercado de TV a cabo, hoje concentrado em mais de 80% nas mãos de dos grupos Net e Sky, para a participação das concessionárias de telefonia fixa local, trazendo idealmente mais concorrência para o setor. Uma idéia polêmica por si só, na medida em que os atuais prestadores de serviço de TV por assinatura contabilizam em milhões de reais o adiamento da entrada das concessionárias locais de telefonia fixa no mercado de TV a cabo, ampliando o seu mercado de pacotes de serviços, o chamado triple play (TV, dados e voz), o qual também é almejado pelas teles.
As cotas
No entanto, a polêmica do projeto não para por aí. A partir de demanda dos chamados produtores independentes de conteúdo – independentes das distribuidoras de conteúdo, esclareça-se –, o deputado Jorge Bittar (PT-RJ), o primeiro relator do PL-29, ainda em 2007, vislumbrou a possibilidade de inserir neste projeto obrigações relativas ao conteúdo divulgado pelas empresas. A lógica era abrir o mercado de distribuição para qualquer interessado, independente da origem do capital, desde que fossem cumpridas exigências de divulgação de conteúdo brasileiro e independente.
Embora seja, em certa medida, incoerente o estabelecimento de uma política de cotas de conteúdo nacional e independente para o serviço de TV paga, enquanto a TV aberta e gratuita, acessível a quase 100% da população brasileira, permaneça livre de obrigações dessa natureza, a idéia tem lógica política. O deputado Jorge Bittar foi de uma sensibilidade política ímpar: estabelecem-se obrigações relativas ao conteúdo aos novos competidores, no momento em que estes almejam entrar no mercado e estão dispostos a arcar com os custos políticos e econômicos para isso, e, assim, abre-se caminho para a instituição de obrigações semelhantes inclusive para a TV aberta e gratuita.
Talvez seja este o principal mérito do PL 29/07, sob a ótica do interesse público. Nunca é demais lembrar que o projeto de lei que estabelece cotas de conteúdo independente e regional para a TV aberta, de autoria da ex-deputada Jandira Feghali, tramita desde 1991 no Congresso Nacional, sem que houvesse jamais contexto político apropriado para a sua aprovação, devido às pressões empresariais contrárias à proposta.
O projeto de Bittar, de instituição de políticas de cotas, foi encampado pelos relatores que o seguiram, com apoio da Agência Nacional de Cinema (Ancine) e das associações de produtores brasileiros independentes. Assim, as cotas de conteúdo nacional e independente constaram nos textos aprovados em todas as comissões de mérito que analisaram o PL-29 na Câmara: na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio (CDEIC); na Comissão de Defesa do Consumidor (CDC); e, por fim, no substitutivo do deputado Paulo Henrique Lustosa na Comissão de Ciência e Tecnologia.
Tal qual no substitutivo da CDC, o substitutivo da CCTCI estabelece que, nos canais de conteúdo qualificado, no mínimo três horas e meia semanais devem ser de conteúdos brasileiros de espaço qualificado no horário nobre, sendo que metade da cota deve ser produzida por produtores independentes. Nota-se, porém, que a definição do que é conteúdo brasileiro de espaço qualificado mudou na CCTCI, em relação à CDC, atendendo à demanda das Organizações Globo: passam a contar como conteúdo em espaço qualificado não apenas filmes, documentários, séries e novelas, como no texto da CDC, mas também programas de variedades e programas de auditório que não sejam ancorados por apresentador.
Mais recursos
Por outro lado, a cota de canais inteiramente nacionais aumentou. Os substitutivos da CDEIC e da CDC estabeleciam que todos os pacotes ofertados deveriam possuir pelo menos um canal exclusivo de conteúdos brasileiros. O substitutivo da CCTCI diz que, em todos os pacotes, a cada três canais de espaço qualificado, ao menos um deve ser canal brasileiro de espaço qualificado, até o limite de 12 canais brasileiros. Desses, pelo menos dois canais devem veicular, no mínimo, 12 horas diárias de conteúdo produzido por produtora brasileira independente, três dos quais no horário nobre.
Adicionalmente, pelo menos 1/3 desses canais brasileiros deve ser programado por programadora brasileira independente – conceito novo introduzido pelo texto da CCTCI. Ressalta-se, porém, que mudança de última hora feita pelo relator praticamente anulou a cota para programadoras independentes: este conceito foi alterado, de forma que a programadora independente pode ser controlada por concessionárias de radiodifusão ou coligada a elas. Apenas um canal do pacote deverá ser programado por programadora não ligada a empresas de radiodifusão. E esse dispositivo pode ser eliminado na continuação da tramitação do projeto, pois conta com forte rejeição das emissoras de TV.
Nota-se que todo esse complicado sistema de cotas de conteúdo nacional e independente adquiriu, na CCTCI, prazo de validade: o sistema de cotas deixa de viger 12 anos após a promulgação da lei. A lógica é que, dentro desse prazo, a indústria audiovisual brasileira adquira fôlego para galgar espaço de distribuição na TV paga brasileira sem a necessidade da política de cotas. Trata-se, porém, de tempo extremamente exíguo ao se levar em conta a maturidade da indústria de audiovisual dos Estados Unidos, por exemplo, com quem os produtores brasileiros têm de competir por espaço de distribuição, seja na televisão, seja no cinema. Muito mais lógico seria que esse prazo fosse estabelecido não em lei, mas sim na regulamentação, de forma que a agência reguladora avaliasse a necessidade ou não da continuação do sistema de cotas. Sem a moeda de troca da abertura do mercado de TV a cabo para o capital estrangeiro e para as concessionárias de telecomunicações, dificilmente se pode vislumbrar a aprovação, pelo Legislativo brasileiro, de uma nova política de cotas de conteúdo nacional e independente para a TV paga, caso esta seja avaliada como necessária, daqui a 12 anos.
Outro ponto a ser ressaltado é que, na versão do texto aprovado na CCTCI, sumiu a proibição – que constava nos substitutivos das comissões de Desenvolvimento Econômico e de Defesa do Consumidor – de contratos de exclusividade entre programadoras, empacotadoras e distribuidoras. Os contratos de exclusividade entre os canais da Globosat (programadora) e Net (empacotadora e distribuidora) é um dos entraves para o mercado brasileiro de TV por assinatura. Todos os canais deveriam ser oferecidos, em igualdade de condições de oferta, para quaisquer distribuidores, de forma a se destravar a cadeia do audiovisual brasileira.
Chegou a ser aventada, durante as discussões do PL-29, a possibilidade de a Ancine regular e fiscalizar a questão, mas, conforme o substitutivo aprovado na comissão de mérito, a fiscalização dos contratos de exclusividade continua a ser atribuição exclusiva do Conselho de Administração Econômica (Cade), que pode atuar apenas ex post, isso é, após provocado. A atuação efetiva do Cade sobre esse ponto é essencial, principalmente a partir do ingresso de novos distribuidores no mercado de TV paga.
No caso do fomento à produção audiovisual nacional, a atuação eficaz da Ancine, a partir da aplicação de critérios democráticos para a distribuição dos recursos, será fundamental. Isso porque o PL 29 prevê recursos adicionais para a Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional) – em torno de R$ 200 milhões anuais –, mas esses recursos podem ser utilizados por qualquer produtora de conteúdo nacional, inclusive as não independentes.
O substitutivo aprovado na CCTCI apenas estabelece que 30% desse montante deverão ser destinados a produtoras estabelecidas nas Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e que 10% deverão ser destinados ao fomento da produção independente veiculada primeiramente nos canais comunitários, universitários e de programadoras brasileiras independentes. Mais recursos para a produção nacional podem, sim, auxiliar o desenvolvimento de uma indústria nacional audiovisual forte, desde que esses sejam distribuídos de forma a privilegiar o fortalecimento de produtoras independentes das concessionárias de radiodifusão já amplamente estabelecidas no mercado.
A participação das teles no mercado
Cabe destacar, ainda, mudança sutil, mas relevante, que o substitutivo da Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática traz nos dispositivos relativos às restrições para as prestadoras de serviços de telecomunicações produzirem conteúdo. Os substitutivos da CDEIC e CDC determinavam que operadoras de telecomunicações não poderiam deter mais de 30% do capital total e votante de empresas de produção e programação brasileiras. No substitutivo da CCTCI, a restrição de capital vale para quaisquer produtoras ou programadoras com sede no país. Ou seja, antes, a restrição para a participação de teles valia apenas para produtoras e programadoras com 70% de capital nacional. Agora vale para quaisquer produtoras e programadoras com sede no Brasil.
A mudança no texto ocorreu justamente após a compra da empresa GVT, a qual conta com uma das mais robustas redes de banda larga do País, pelo grupo francês de comunicações Vivendi, que atua não apenas na área de telecomunicações como na área de conteúdo. Hoje, a produção de conteúdo no Brasil é livre, seja por empresas estrangeiras, seja por empresas de telecomunicações. Com o PL-29, as concessionárias de radiodifusão, hoje as maiores produtoras de conteúdo no país, resguardam-se da competição das teles na área de produção. Coincidência ou não, foi apenas após a compra da GVT pela Vivendi que o PL-29 foi aprovado na CCTCI da Câmara.
Se a restrição de capital de operadoras de telecomunicações em produtoras e programadoras pode fazer sentido, do ponto de vista da restrição de atuação da mesma empresa em mais de uma etapa da cadeia do audiovisual (produção, programação, empacotamento, distribuição), o mesmo não se pode dizer da proibição que o PL-29 estabelece para empresas de telecomunicações contratarem talentos artísticos nacionais e direitos sobre obras de autores nacionais e adquirirem direitos de exploração de imagens de eventos de interesse nacional. Na tentativa de se resguardar o mercado de produção e o direito de exploração sobre determinados eventos nacionais para as empresas de radiodifusão, acaba-se por limitar o mercado para os artistas e autores nacionais.
A limitação é desnecessária para evitar o monopólio da mesma empresa em várias atividades da cadeia do audiovisual, na medida em que as restrições de capital já estão estabelecidas. Cabe questionar mesmo a constitucionalidade de dispositivo dessa natureza, tendo em vista o princípio constitucional da livre expressão da atividade intelectual, artística e de comunicação.
A tramitação
São justamente essas restrições estabelecidas para o livre mercado de produção no Brasil, hoje, que podem impulsionar uma mais rápida tramitação do Projeto de Lei n° 29, de 2007, a partir de agora no Congresso Nacional, em um contexto de ingresso, no País, da nova empresa francesa de comunicações, em seu mais amplo sentido convergente. Vale lembrar que a proposta tramitou por três meses na Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática, em um primeiro momento, recebendo em seguida novo despacho; por quase seis meses na Comissão de Desenvolvimento Econômico Indústria e Comércio; depois novamente por oito meses na CCTCI, sem chegar a ser votada; e, em seguida, por um ano na Comissão de Defesa do Consumidor.
Em seguida, retornou à CCTCI, onde foi votada em apenas três meses. Para isso, contaram não apenas o novo contexto do mercado, como a habilidade política do novo relator, deputado Paulo Henrique Lustosa (PMDB-CE), e a atuação da liderança do governo, que passou a ser mais ostensiva em relação ao projeto nos últimos meses.
A participação ativa do governo em projetos de lei polêmicos no setor de comunicações, caracterizado por forte ingerência patrimonialista no Congresso Nacional, mostra-se essencial para que essas propostas de fato sejam transformadas em lei.
Essa constatação torna temerária a declaração evasiva do ministro das Comunicações, Hélio Costa, no programa Roda Vida, da TV Cultura, do dia 8 de dezembro, sobre a possibilidade de apresentação de uma nova lei para o setor de radiodifusão, após a Conferência Nacional de Comunicação. Costa afirmou que o responsável pela mudanças na legislação é o Congresso Nacional, o qual dificilmente assumiria uma responsabilidade como essa em ano eleitoral. Porém, um projeto desta grandeza só teria força se apresentado pelo Poder Executivo. Quando se trata do setor de comunicações no Brasil, um Poder Executivo atuante e corajoso é essencial para a promoção de mudanças, inclusive no âmbito do Legislativo.
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Pesquisadora do Laboratório de Políticas de Comunicação (LaPCom) – UnB e analista da ECCO – Estudos e Consultoria em Comunicações