Ia começar dizendo que já não suporto tanto clic de máquina fotográfica – máquinas mesmo, máquinas disfarçadas de celular, máquinas embutidas em máquinas de filmar, máquinas em formato de bichinho de pelúcia, máquinas escondidas dentro de Aípodes e Aí(não)podes, máquinas disfarçadas de canetas – quando de repente me lembrei que as máquinas fotográficas digitais nos roubaram a poesia do clic. As máquinas atuais não fazem clic. Ninguém mais olha o passarinho que saía – eu juro que saía! – das lentes das Rolleyflex e Yashikas. Adeus, passarinho. Adeus, clic.
Acelerado, está tudo acelerado. O mundo, embalado a mil por hora numa pressa incontida, como diria Millôr, ‘demonstra o inconseqüente’: já não fotografamos para guardar, fotografamos para… não ver. Já perceberam que, agora, antes da paisagem vem a foto? No passado saíamos para ver a paisagem e, se gostássemos dela, fotografávamos para guardar a lembrança. Hoje, a ordem se inverteu: as pessoas fotografam antes, e assim não vêem a paisagem. E depois, esquecem da paisagem que não viram e da foto. Sim, porque a maioria das fotos é vista no instante em que é feita, para saber se ficou boa, e às vezes noutro, quando é enviada para alguém que igualmente verá apenas uma única vez e passará para a frente ou apagará. Nunca se fotografou tanto. E nunca se viu tão pouco a foto que se fez.
A realidade acabou
As fotos substituíram a palavra, com todas as conseqüências que isso vem provocando. Hoje vivemos dentro de um grande vídeo clipe, absolutamente caótico, como todo vídeo clipe, numa montagem frenética de imagens que se sucedem diabolicamente sem que uma só fique retida na retina da memória. Mesmo esses conjuntos de fotos genialmente produzidas e tratadas, que vez por outra nos enchem as caixas de mensagens de e-mails, mal se vê uma vez e já se joga fora, não tanto por causa da qualidade, mas porque não há mais espaço onde guardar tudo isso, nem no disco rígido do computador, nem no disco cansado da memória.
Outro dia, convidado para dar uma das muitas palestras que venho dando por aí (a gente percebe que está ficando velho quando começa a ser convidado para dar palestras a toda hora), percebi que ninguém queria conversar comigo, só tirar fotos. Não queriam saber o que tinha a dizer. Só queriam fotos de mim, que sou assumidamente feio. Não sei para que foto comigo, com tanta gente bonita dando sopa por aí. Outro outro dia, em visita ao Centro de Eventos Dragão do Mar, em Fortaleza, vi uma fila para tirar fotos ao lado de uma estátua de Patativa do Assaré. ‘Caramba, o Patativa é bem reconhecido!’, comentei. Mas que nada. Minha namorada, atrevida que só, foi lá e perguntou a algumas pessoas da fila se sabiam quem era aquela estátua de chapéu. Foram olhar a placa pregada no chão para conferir o nome. ‘Ah, é Patativa do Assaré’. E o que ele fazia? Ninguém sabia. Importante era a foto, não o personagem. Pobre Patativa.
Por isso, quando digo aos meus alunos que a realidade acabou, eles riem. Mas é verdade. Hoje moramos numa espécie de Matrix. Nossa realidade é paralela, afirmo, cheio de convicção, enquanto alguém me fotografa com o celular – para conferir se a foto ficou mesmo boa, confirmar e deletar em seguida, com ar de missão cumprida.
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Jornalista, escritor e professor de telejornalismo na UnB