Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A esperança de um debate democrático

O observador atento da cena brasileira haverá notado o número inusitado de movimentos desencadeados nos últimos dias por diferentes atores interessados na formulação das políticas públicas do setor de comunicações.

** No dia 9/11 foi o próprio presidente da República que, aproveitando a solenidade de entrega do Prêmio do Mérito Cultural, realizada no Palácio do Planalto, falou pela primeira vez em público sobre o ‘pré-projeto’ da Ancinav.

** No dia seguinte, o Senado Federal, sob pressão dos empresários de radiodifusão, rejeitou as modificações da MP 195/04, já aprovadas na Câmara dos Deputados. Uma das modificações incluía o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana entre os órgãos responsáveis pela classificação etária de programas de televisão, além do Ministério da Justiça e das empresas de comunicações.

** A decisão do Senado provocou a publicação de uma nota da recém criada Associação Brasileira de Radiodifusores (Abra), que ‘expressou satisfação pela rejeição do projeto de lei de reversão, PLV 45/04, que criava normas censoriais inaceitáveis, acrescentadas ao projeto que estabelecia a obrigatoriedade de instalação de bloqueador de canais nos receptores de televisão’.

** Ainda no dia 11, a Associação Nacional de Jornais (ANJ) e a Unesco colocaram no ar um site denominado Rede em Defesa da Liberdade de Imprensa (www.liberdadedeimprensa.org.br/webs/unesco_novo). Na sua página de abertura, o site afirma que ‘a liberdade de imprensa é um bem da sociedade, antes mesmo de ser um direito de profissionais e de empresas ligadas a essa atividade e, por sua própria natureza, exige mobilização constante, vigilância permanente e firme posicionamento diante de fatos que representam ameaça ou que efetivamente a atinjam’.

** No dia 15, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) veio a público para ‘denunciar uma manobra em curso na Câmara dos Deputados para impedir o debate sobre a criação do Conselho Federal de Jornalismo. Contrariando os princípios da democracia – e da liberdade de expressão que dizem defender –, os grandes empresários do setor de comunicação pressionam parlamentares e o governo federal para que o projeto de lei propondo a criação do CFJ seja sepultado sem ser debatido no Congresso Nacional’.

** No dia 18, o Congresso Brasileiro de Cinema realizava, no Auditório Nereu Ramos da Câmara dos Deputados, um amplo seminário sobre o tema ‘A Ancinav e o fortalecimento da produção audiovisual brasileira’.

** No dia 22, o presidente da Abra, João Carlos Saad, concedia sua primeira entrevista à Folha de S. Paulo.

** No dia 23, os principais jornais do país estamparam um anúncio de página inteira dando conta da criação do FAC (Fórum do Audiovisual e do Cinema). O próprio anúncio explicita que são sócios-fundadores 13 mil empresas das áreas de produção, tecnologia, operação, distribuição, programação e exibição de cinema, rádio, publicidade, vídeos domésticos, televisão aberta e por assinatura. Entre as 18 entidades empresariais signatárias estão algumas tradicionais do setor de comunicações, como a Abap, a Abert e a Abta.

** E, finalmente, no dia 24/11, foi lançada, no Congresso Nacional, a Frente Parlamentar em Defesa da Indústria Cinematográfica Brasileira, composta por mais de 100 parlamentares. A Frente anuncia que atuará ‘na defesa, proteção e divulgação do cinema nacional’ e trabalhará pela aprovação no Senado Federal ‘de projeto de lei que torna obrigatória a apresentação de filmes nacionais na televisão’.

Quero destacar três dessas manifestações: o pronunciamento do presidente da República; a entrevista do presidente da Abra e a criação do FAC.

O presidente Lula afirmou, de improviso, em seu pronunciamento:

‘Não é fácil, no nosso país, qualquer mudança em profundidade que queira se fazer sobre qualquer ramo das atividades econômicas. (…) As adversidades existem muitas vezes no anonimato e, quando se apresenta uma proposta, por melhor que seja, que tente mudar alguma [coisa], ela começa a mexer com hábitos, com costumes, com pessoas que acham que aquilo é um direito adquirido e aí é um trabalho imenso. (…) Obviamente que nós não queremos fazer uma lei (…) para tirar nada de ninguém. O que nós queremos é garantir direitos a outros que não têm direitos; o que nós queremos é aumentar o número de pessoas que possam ter direitos neste país; queremos aumentar o número de pessoas que possam participar da atividade cultural no nosso país. E, mesmo assim, nós enfrentamos uma adversidade muito grande, porque estamos mexendo com hábitos, estamos mexendo com pseudodireitos, estamos mexendo com costumes e tudo isso é sempre muito complicado’.

Já o presidente da Abra concentra-se em dois pontos principais: primeiro, insiste João Carlos Saad, a radiodifusão está sendo atacada pelo governo (‘diversos ministérios’) e pelo Congresso Nacional (‘projetos’) que ‘querem enfraquecer o setor’, ‘destruir o único setor que dá entretenimento e informação grátis para a população’. E, segundo, o projeto da Ancinav é ruim e na verdade esconde o fato de que o Ministério da Cultura não está fazendo nada a não ser ‘arruaça’. Além disso, diz Saad, a Ancinav ‘quer controlar os veículos todos’ e ele ‘não quer ficar escravo de uma única opinião ou de censores estáveis’. E mais, tudo isso se esconde por trás de ‘discursos maravilhosos sobre a democracia’ por gente (sic) que, na verdade, ‘não gosta dela e por isso quer controlar tudo’.

Um novo ciclo

Por outro lado, o FAC se apresenta como a união de ‘todos os elos do setor de audiovisual’ com três finalidades principais: ‘a luta visceral pela liberdade, sem a qual não há arte possível; o respeito à cultura nacional e à pessoa humana, sem o qual não se pode falar em cultura; e a defesa da livre iniciativa no desenvolvimento econômico nacional, sem o que não se pode ter uma nação forte e socialmente justa’.

Embora a sigla Ancinav não apareça uma única vez no texto de página inteira publicado nos jornais, o FAC é obviamente uma aliança dos setores que são contrários a regulamentação do audiovisual no país e, particularmente, contrários ao que foi até agora divulgado e discutido como sendo a proposta de regulação do governo.

Aparentemente as principais posições em disputa estão explicitadas. O diagnóstico do presidente da República sobre as dificuldades de mudança corresponde à realidade de um setor que ainda tem como principal marco regulatório um código aprovado em 1962, hoje completamente desatualizado e desfigurado. Por outro lado, as declarações e insinuações do presidente da Abra são graves. Cabe questionar: não é democrático colocar projetos de regulação em discussão com a sociedade e submetê-los à apreciação do Congresso Nacional? Já a criação do FAC deixa claro que os empresários continuarão defendendo seus interesses, agora por meio da ação articulada de várias entidades representativas.

Para um setor que tem como característica histórica exatamente a ausência do debate público ou um debate restrito apenas ao governo e aos empresários, excluindo a sociedade civil, será que estaríamos inaugurando um novo ciclo marcado pelo embate democrático de todas as posições em disputa?

Será que se justifica a esperança de que, com a explicitação pública dos diversos atores e de seus interesses, poderemos avançar no sentido da construção de políticas públicas democráticas de comunicações?