No festival de bobagens protagonizadas por um tal de Larry Rohter, que parecia ter bebido alguma coisa muito forte quando escreveu aquilo, e por um certo Luiz Inácio Lula da Silva, que podia ter pedido uma caipirinha pra se acalmar e assim evitar o vexame de repetir uma das práticas mais abjetas da ditadura que tanto combateu, ficou faltando uma análise sobre a desastrada entrevista que o presidente da ONO (sigla em inglês para a Organização de Ombudsmen de Notícias) concedeu à Folha de S. Paulo comentando o incidente. Até onde pude acompanhar, parece que ninguém se ocupou do assunto até aqui. Por isso, mesmo com algum atraso, resolvi meter minha colher enferrujada neste pirão.
Não tive acesso ao texto original da entrevista (nem teria razões para exigir que fosse publicado em inglês, afinal, no Brasil, a língua oficial ainda é o português, or not?). Mesmo que se possa debitar a uma má tradução os absurdos que o presidente da ONO, jornalista Jeffrey Dvorkin, distribuiu ao responder a algumas perguntinhas do correspondente da Folha em Nova York, Rafael Carielo, ainda assim é espantoso o volume de sandices que o dirigente de uma organização com tal responsabilidade botou pra fora ao analisar o assunto.
Num surto corporativo que nem de longe combina com a função do ombudsman, Dvorkin defende The New York Times da acusação de ter praticado mau jornalismo, afirmando taxativamente que a matéria de Rohter ‘é OK’. Tal como Rohter, Dvorkin esconde-se atrás do rumor para justificar a diatribe: ‘Parece haver muitas insinuações sobre o assunto’. E a verdade é que não havia (nem muitas nem poucas) insinuações a respeito, o que desautoriza inteiramente a afirmação do ombudsman-rei. ‘Parece’ é verbo de boateiro, não de jornalista, muito menos de ombudsman.
Sem zelo
Depois, mais uma vez raciocinando como Rohter, Dvorkin parte do princípio de que, se o presidente tem mesmo um problema com bebidas, então se justificaria a invasão de sua privacidade: ‘(…) neste caso, acho que é uma história importante, realizada de forma correta’. Duplo erro, pois ficou provado à exaustão que, 1) nem a história é importante (porque não havia, como Rohter tentou insinuar, uma preocupação nacional com o excesso de birita de Lula); nem 2) foi realizada de forma correta (pois a matéria não qualificou as fontes pelo viés político de cada uma, sobretudo o ex-governador Leonel Brizola, hoje um dos maiores críticos e adversários de Lula).
O repórter brasileiro insiste com Dvorkin. Quer saber se é correto um jornalista escrever sobre rumores. O ombudsman-mor se afunda mais nas contradições, ao responder afirmativamente, lembrando que, ‘às vezes, a notícia é sobre o que todos estão falando’. Todos quem, cara-pálida? O Cláudio Humberto, o Brizola, o Mainardi e quem mais? Pouco à frente, e novamente protegido pelo manto do ‘rumor’, Dvorkin afirma que ‘parece haver exemplos de casos em que o presidente de fato teve dificuldades em público’. Sem abrir o jogo e revelar detalhes desses ‘exemplos’, o ombudsman incorre no mesmo erro de Rohter. É, no mínimo, irresponsável mencionar ‘exemplos’ sem citá-los, mesmo numa simples entrevista. Neste caso, entramos no terreno do ‘consta que’, onde vale tudo.
A situação fica mais dramática à medida que a entrevista avança. Quando Carielo pergunta se a matéria de Rohter é respeitosa ou se deveria procurar ser respeitosa, a resposta de Dvorkin é um espanto: ‘Não estou muito preocupado se é respeitosa ou não’. Pois devia se preocupar, pois essa é uma das principais funções do ombudsman – o de zelar pela prática do jornalismo respeitoso. Todo desrespeito é condenável, ou será que não ensinaram isso a ele?
Antiaula a esquecer
Por último, Dvorkin lembra que o jornalismo norte-americano foi acusado de ser suave demais com o presidente Bush após o 11 de setembro, e que o mesmo pode ter acontecido no Brasil – ‘uma tendência a procurar não ofender uma figura política poderosa’. Comparação infeliz e desinformada. Infeliz porque aqui não aconteceu nada que nem de longe se aproximasse do 11 de setembro. Desinformada porque, se procurasse saber só um pouquinho a respeito da relação da mídia brasileira com Lula, ia descobrir que até mesmo a chamada ‘lua-de-mel’ da imprensa com o metalúrgico que virou presidente acabou-se há muito tempo, e o melhor exemplo disso foi a forma como foi tratado o escândalo Waldomiro.
A figura do ombudsman, que surge em 1967 no Louisville Courrier Journal, do Kentucky (no início, apenas uma espécie de fiscal interno da publicação), cresce três anos depois ao ser entronizada no Washington Post (já com uma coluna periódica de discussão dos assuntos mais cabeludos) e, a partir daí, chega ao espanhol El País, para depois invadir as redações dos mais prestigiosos e respeitados órgãos de imprensa do mundo, bem que merecia ter na presidência de sua organização representativa um profissional mais responsável. Se a tradução da entrevista é fiel e se Dvorkin pensa mesmo da forma como se manifestou, então é melhor botar logo o Rohter no lugar dele. O correspondente do New York Times pelo menos alegou que não quis desrespeitar o presidente da República brasileira, fato para o qual Dvorkin está solenemente se lixando ao afirmar que não está preocupado se a matéria é respeitosa ou não.
Até outro dia eu ensinava aos meus alunos que a função do ombudsman era bem diferente deste que emana da ‘aula’ de Jeffrey Dvorkin. Fiquei na torcida para não lerem a entrevista do presidente da ONO. Iam desaprender tudo. Pelo visto, não deram muita importância a ela, porque até agora ninguém comentou nada comigo. Como os jornais do arquivo da Faculdade de Comunicação da UnB só ficam disponíveis por uma semana, acho que eles escaparam dessa antiaula.
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Jornalista, pesquisador, professor da UnB, documentarista, autor de A noite das reformas, O salto sem trapézio, Vermelho, um pessoal garantido, Caprichoso: a Terra é azul e Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês. Este artigo é parte do projeto acadêmico Telejornalismo em Close (http://caid.sites.uol.com.br), coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para paulojosecunha@uol.com.br