Pela 11ª vez nos últimos nove anos, somos convidados a bisbilhotar a vida alheia logo após o horário nobre da TV. Sem constrangimentos e em doses homeopáticas – a não ser para quem opta pelo pay-per-view e tem cardápio 24 horas. A ‘novela da vida real’ mais famosa do país já faz parte do cotidiano de milhares de telespectadores de janeiro a março. O público continuará fiel? Será que o recorde da edição de 2010, quando 154 milhões de votos decidiram a final, vai ser superado? A longevidade do Big Brother Brasil espanta até os mais otimistas. Em poucos países o produto criado na Holanda em 1999 teve tantas edições. Semana passada, reparei que, no fim da Avenida Comercial Norte, em Taguatinga, tem um lava-jato chamado Big Brother 2. Prova de que o jogo já foi incorporado ao nosso cotidiano.
Não dá para ficar indiferente ao programa, dada a avalanche de informações sobre ele. Mesmo quem consegue escapar da ‘espiadinha’ proposta por Pedro Bial fica sabendo dos movimentos dos participantes pelos outros programas da Globo, emissoras concorrentes, jornais, internet… Fora os comentários no ambiente de trabalho, nos churrascos, nas festinhas de crianças. Até que a Playboy estampe as curvas da primeira eliminada: aí, todos terão material adicional para as discussões.
Visto sem a paixão dos fãs incondicionais, o BBB parece mais do mesmo. Faz-se uma reforma na casa onde os participantes ficarão confinados, mudam-se as competições, mas a essência continua. Os candidatos ao prêmio final têm padrão definido: jovens, bonitos e que se moldem aos papéis necessários para movimentar o jogo (o vilão, a mocinha ingênua, o fortão, a mais atirada, o sensível etc). Lágrimas fáceis são bem-vindas, manifestações de carinho e desinibição, idem. Eventualmente, um participante angaria com mais facilidade a simpatia do público. Provavelmente, vai receber mais convites quando deixar o programa e prolongar a vida de ‘celebridade instantânea’ (sub-celebridade, na maioria das vezes). Já são mais de 100 indivíduos que inauguram uma nova ocupação no mercado de trabalho, a de ex-BBB. Fora os ex-A fazenda, ex-No limite etc.
Violência e bebidas alcoólicas
O público se sente cada vez mais poderoso com os reality shows. Basta um computador ou um celular para exercer o direito à interatividade e decidir os destinos dos participantes. Brincar de Deus, quem já não sonhou com isso? A brincadeira rende, ano a ano, mais dividendos. Patrocinadores fazem a festa em inserções contínuas, independentemente do intervalo comercial. Reality shows são ótimos negócios, com custos mais baixos do que os de outros programas (novelas, séries) e rentabilidade muito maior. Taí o sucesso de A fazenda, na Record, e os investimentos dos outros canais abertos no gênero. No mundo da TV por assinatura, então, os realities se reproduzem com espantosa velocidade.
Cada vez mais esses programas são muito mais show do que reality. Ok, não dá para classificar os programas do gênero como obras de ficção, já que os concorrentes não seguem um script com diálogos pré-escritos e final feliz. Mas que realidade é essa que tanto se apregoa? Você, leitor, seria o mesmo se soubesse estar sendo vigiado por dezenas de câmeras e tendo seus barulhos mais íntimos captados por microfones poderosos? Agiria normalmente quando se lembrasse que tudo o que fosse registrado poderia ser usado – a favor ou contra você – na corrida pelo dinheiro do prêmio? Autores como a gaúcha Elizabeth Bastos Duarte já cunharam um meio termo, a ‘para-realidade’, para tentar entender esse ‘estado’ entre realidade e ficção, até então inédito na TV.
Os reality shows podem nos dizer muito sobre a sociedade em que vivemos. Preconceitos e valores reproduzidos no BBB, além da própria reação do público – nas votações e nos comentários espalhados pela programação da Globo –, rendem farto material para estudo. Podem nos dizer muito também sobre o nosso tempo: espelham, por exemplo, a superexposição da privacidade provocada também pela internet. Quem ousaria supor, há 20 anos, que teríamos anônimos tomando banho, tirando a roupa e fazendo sexo sem constrangimento diante de câmeras? Esses programas nos mostram também a opção cada vez mais cruel pelo individualismo. Lemos nos jornais, todo dia, notícias que corroboram essa tendência. Na nova edição do BBB, foram prometidas violência e bebidas alcoólicas fortes. Mais uma ‘colaboração’ da vida real à novela da qual ouviremos falar, se não quisermos segui-la de perto, nos próximos meses.
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Jornalista, mestre em comunicação, autor do livro A dinâmica dos reality shows na televisão aberta brasileira (Editora Universa)