Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A nobre função de matar o tédio

‘Nós estamos no negócio de matar o tédio’, já dizia o apresentador de TV Howard Beale em 1976, em apoplético discurso no filme Rede de Intrigas (Network). O ‘profeta louco das ondas eletromagnéticas’, criado pelo roteirista Paddy Chayefsky e o diretor Sidney Lumet para o que é, ainda hoje, a mais aguda crítica já feita à televisão, suas práticas e seus valores, resumia nessa frase objetiva e franca a missão principal do veículo que fizera dele uma celebridade.

É oportuno recordar a frase nesta época de festas em que as pessoas transbordam de afeto, reúnem amigos e familiares, buscam sofregamente o convívio com o próximo, mas não dispensam o televisor ligado junto à árvore de natal. Um breve olhar para a cena natalina – brasileira ou de outros países, não muito distintos nesse aspecto – é suficiente para demonstrar o quanto a televisão é importante como meio de entretenimento e como são equivocados os discursos que tentam desqualificar essa função em favor de um maior volume – indiscutivelmente necessário – de informação e de educação na tela.

Canal para bebês

A televisão é, sim, um negócio para matar o tédio, antes e acima de qualquer outra coisa que possa fazer pelos humanos. Ela preenche o tempo livre com maior eficiência e menor custo do que outras formas de diversão, o que é a razão da sua universalidade. Qualquer um, pequeno ou grande, pobre ou rico, inteligente ou burro, tem sempre à mão aquele botão redentor do aparelho de TV, para com um simples toque relaxar das tensões diárias, proteger-se da brutalidade circundante e deixar flutuar a imaginação. Ainda mais os solitários, que preenchem suas carências afetivas com os seres e os temas da tela, e que teriam natais sombrios, angustiantes, não fosse aquela luz amiga a cintilar diante de seus olhos.

Seja por interesse mercadológico, nas emissoras comerciais, seja por espírito público, nas educativo-culturais, a televisão se propõe a subsidiar os humanos de afeto e companhia em todos os momentos da vida. Literalmente do começo ao fim dela, como demonstram dois projetos que provocaram curiosidade e polêmica neste ano. Aqui, no Observatório, a colega Leneide Duarte-Plon comentou, no início deste mês, a celeuma causada na França pela introdução de uma emissora voltada aos bebês [ver ‘Cientistas franceses pedem moratória para canal‘). Um pouco antes, em novembro, pipocou planeta afora a notícia de uma emissora lançada na Alemanha para se dedicar exclusivamente à morte e ao luto.

A TV para bebês intitula-se BabyFirst TV e é mais uma oferenda norte-americana aos deuses do consumo. Está no ar 24 horas por dia em 28 países, com um público estimado de 13 milhões de telespectadores, na faixa de 6 meses a 3 anos de idade. Surgiu da constatação de que muitos pais compram DVDs com programas voltados aos bebês, pagando até 20 euros por exemplar, o que configura um polpudo mercado. A emissora oferece 50 programas em sua grade, com conteúdos que pretendem estimular nos bebês o desenvolvimento da linguagem e o conhecimento da matemática, além das ‘destrezas sensoriais e do jogo criativo’.

Fazer companhia e divertir

Os produtores norte-americanos garantem contar com a assessoria de pedagogos e psicólogos infantis, mas os colegas franceses desses profissionais, segundo Leneide, caíram de cacete na emissora, argumentando que na primeira infância a criança precisa mobilizar o corpo e a mente com brinquedos, e não prostrar-se diante da tela da TV. Seja como for, aí está reiterado o fato de que a televisão almeja acompanhar as pessoas desde o início de suas vidas, oferecendo a elas companhia agradável e incondicional a qualquer hora.

Agora e na hora de nossa morte, propõe a Etos TV alemã, ‘o canal do luto’. Vitrine do mercado funerário de seu país, que reúne mais de 3.000 empresas, a emissora aborda sem assombro um tema difícil, convicta de que ele é mais um entre tantos que interessam às pessoas, sobretudo quando enfrentam a morte de parentes e conhecidos, ou a perspectiva da própria partida. É o que mostra sua insólita programação? ‘Cemitérios como lugares de memória cultural, porque o futuro necessita de origens.’ Obituários pessoais, ‘porque a memória conecta as gerações’. Além de informações práticas sobre o que fazer diante de um óbito e dicas ‘de prevenção’ porque, afinal, salvo os suicidas, ninguém quer despedir-se da vida antes da hora.

Entre os dois extremos da existência, a televisão procura entreter e confortar os humanos de todas as formas possíveis. Para a infância, já são muitos os canais, repletos de desenhos animados, seriados e shows. Para a adolescência, canais de música pop ou de videogames, como os dois que se defrontam na TV paga brasileira, a MTV e a Play TV. Para a vida adulta, quando os interesses se particularizam e a identidade se define de forma mais complexa, uma infinidade de canais segmentados por conteúdo, sexo, faixa etária, nível cultural. E todo esse amplo leque de opções identificado por um denominador comum: o desejo de fazer companhia e divertir. De matar o tédio.

Discurso confuso

A função de entretenimento da TV, por tudo isso, deveria merecer mais consideração. Mesmo, ou sobretudo, quando os programas têm forma e conteúdo que escapam ao padrão de gosto da elite. Uma boa atração televisiva não precisa ter, necessariamente, aspectos informativos e educacionais; pode perfeitamente oferecer apenas diversão ligeira, descompromissada. ‘Baixaria’ não é o oposto de televisão inteligente; é a degeneração da televisão popular, dos produtos concebidos para as preferências culturais e o nível de cognição da grande massa telespectadora. É totalmente possível uma televisão popular de qualidade, sem baixarias e também sem maiores ambições intelectuais. É possível apenas entreter, sem querer mais do que isso, com ética, respeito e responsabilidade.

O discurso bem pensante a respeito disso, entretanto, é confuso. Quando aborda a TV de entretenimento, costuma jogar no mesmo saco programas razoáveis e grandes porcarias, rotulando tudo de baixaria. Shows de auditório, game shows, telenovelas, musicais sertanejos e programas humorísticos padecem desse preconceito, do qual estão isentos, por definição, os programas de debate, os telejornais, os documentários, os musicais de MPB e as minisséries de inspiração literária – todos avaliados, a priori, como programas sérios e úteis, mesmo que ocultem a mais sórdida baixaria, na forma de manipulação de dados, distorção, parcialidade, omissão, partidarismo etc.

Esforço e utilidade

Essa falsa oposição entre uma televisão de qualidade, identificada somente pelo caráter educativo-cultural, e uma televisão de baixo nível, assim considerada por privilegiar o entretenimento, transborda do pensamento crítico para o juízo comum dos telespectadores. E se expressa num discurso freqüentemente culpado, em que a pessoa clama por mais cultura e educação na TV, mas reconhece que não assiste às atrações que atendem ao clamor. É a culpa pelo entretenimento, culpa por assistir TV apenas para se divertir, passar o tempo, esfriar a cabeça ou pegar no sono.

Outra decorrência dessa percepção geral de que a boa televisão é apenas a que informa e educa – e à qual não se assiste porque, infelizmente, ela exige pensar e pensar dá trabalho, é chato… – está na conceituação da TV pública. Muita gente, incluindo especialistas, acredita que não cabe a ela oferecer entretenimento. Apenas ‘fazer a cabeça’, estimular o raciocínio, prover informações. Essa visão só facilita que as emissoras comerciais descumpram seus deveres para com a educação e a informação e impede que as emissoras públicas definam melhor o seu enfoque do entretenimento. Não há, por exemplo, programas humorísticos na TV pública brasileira. Foram raríssimas as suas tentativas nesse sentido, ao longo da história. E por quê? Fazer rir não é coisa séria, talvez das mais sérias que existem, pela função profilática do humor?

A televisão de entretenimento é legítima. Não há nada errado em divertir o telespectador. Não é obrigatório instruí-lo e informá-lo quando se procura diverti-lo, embora seja conveniente que isso ocorra. Convém que nos lembremos disso nestes dias de festas em que as pessoas buscam estar juntas para celebrar a vida e se divertir. A TV procura fazer isso todos os dias do ano, todas as horas do dia, para todos os públicos, por toda a existência das pessoas. Errando ou acertando, merece reconhecimento pelo seu esforço e pela utilidade do serviço que presta.

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Jornalista