Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A perpetuação do estereótipo da favela

Ao longo dos últimos anos tornou-se perceptível a presença de conteúdos baseados em acontecimentos do dia a dia das periferias urbanas na construção das histórias ficcionais. O que se tornou evidente nos filmes da retomada do cinema brasileiro a partir de Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, agora é banalizado pela televisão, que cede o seu horário nobre para tratar do assunto. Atualmente no ar na Rede Globo, a novela Viver a Vida, de Manoel Carlos, toca na ferida do problema de segurança pública do Rio de Janeiro, por meio da história dos personagens Benê e Sandrinha, que são moradores de uma favela comandada por traficantes de droga. Ele está envolvido com a criminalidade do lugar e ela é a irmã da protagonista rica, que poderia optar por um rumo melhor em sua vida, mas apaixona-se pelo bandido.

Esta não é a primeira vez que o novelista aborda a violência na cidade maravilhosa. Em 2003, uma bala perdida matou a personagem Fernanda em Mulheres Apaixonadas. Entretanto, o fato de a principal telenovela do país transformar a favela como um de seus temas promove o debate público sobre a imagem que os telespectadores fazem da periferia? Ou o enredo de Manoel Carlos apenas contribui para reforçar estereótipos?

Em 2007, a novela Duas Caras, última trama da emissora a abordar o tema favela, surpreendeu o público, pois seu autor, Aguinaldo Silva, construiu uma comunidade diferente da qual os espectadores estão habituados a imaginar como representação de uma comunidade periférica. Em Duas Caras, a favela ‘Portelinha’ não sofria com problemas de violência e criminalidade. O objetivo do novelista era desmistificar a ideia de que na favela só residem bandidos, enfatizando o caráter humano e caracterizando a favela como espaço de pessoas honestas e trabalhadoras. Todavia, ao contrário de Aguinaldo Silva, o escritor de Viver a Vida parece que optou por representar o morro como um espaço dominado por quadrilhas de traficantes de droga e isolado do resto dos cenários de cartão postal, tão evidenciados na telenovela.

Realidade proposital

Com o tom naturalista característico do gênero, as cenas de Viver a Vida que se passam na favela tentam criar no imaginário do telespectador a impressão de realidade. Para tanto, o diretor da obra Jayme Monjardim utiliza a tecnologia para alterar as cenas que mostram o ambiente externo da comunidade, como as escadarias que dão acesso ao morro, e aquelas que se passam no interior do barraco onde vivem Benê e Sandrinha. Segundo Monjardim, em entrevista à Folha Online, estas imagens são diferentes quando comparadas com os demais cenários da novela e têm efeitos que se aproximam do cinema. Talvez exista nessa intenção o desejo de assemelhar as sequências mostradas no horário nobre da tevê às cenas de filmes como Cidade de Deus e Tropa de Elite (2007), que foram campeões de bilheteria nas salas de exibição, chamando a atenção do público admirador destes longas-metragens para a novela.

O software que resulta em tal efeito, denominado Base light, conforme o diretor – que também é utilizado para rejuvenescer atores e atrizes – dá a impressão de que de fato os personagens estão em uma favela real. Este clima de realidade propalado por Monjardim, entretanto, no lugar de induzir à reflexão acerca da diversidade e dos problemas de infraestrutura que maltratam os moradores de favela, acaba por representá-la de maneira estigmatizada.

Nesta direção, constata-se que os meios de comunicação, no caso em questão a televisão, funcionam como agentes significantes, produtores de sentido que não reproduzem a realidade, mas sim a definem. A violência exibida pela novela, com ares cinematográficos, pode resultar na glamourização da criminalidade. Na visão de Ivana Bentes (2001), representar a favela utilizando a linguagem do entretenimento, as imagens-clichê, folclóricas e publicitárias reafirmam o que é exposto na mídia todos os dias. Nesta perspectiva, a novela Viver a Vida acaba apenas por transpor a criminalidade das notícias dos jornais para o público de forma espetacularizada por meio de artifícios tecnológicos.

Deste modo, a obra evidencia um maniqueísmo determinista, sempre presente nos produtos midiáticos, que faz uma divisão entre personagens do bem e do mal, configurando numa redução da abordagem do tema favela, deixando de tratar de outros enquadramentos a respeito do tema. De acordo com Felipe Botelho Corrêa (2006), reduzir uma favela ao tráfico de drogas e à violência, mostrando os personagens com estereótipos animalescos, é estabelecer um jogo de alteridade com o espectador, em que ninguém se identifica com as atrocidades que acontecem na trama. ‘O que se tenta criar é um território de barbárie que não tem contato com o mundo externo: é uma idealização de um lugar onde só o terror tem vez (CORRÊA, 2006, p.54)’.

Ao longo da trama, a questão do estereótipo é percebida em diversos trechos. A representação da favela, de Benê e de alguns de seus comparsas confirmam a imagem preconceituosa que a mídia faz do local e das pessoas que vivem na periferia. Para Aluizio Trinta (2008), os estereótipos marcam sua presença no âmbito das representações sociais, dando destaque para fatores afetivos e origens inconscientes no comportamento coletivo. Na visão dele, são considerados como representação rígida e redutora, na maioria das vezes compartilhados por um grupo humano, com referência a instituições, pessoas ou grupos. Nesta linha de pensamento, os estereótipos valem-se de imagens preestabelecidas para todos os indivíduos de uma classe social, que se fixam mediante à atribuição genérica de qualidades de caráter apreciativas ou depreciativas, resvalando ao preconceito.

Entende-se assim que por meio de estereótipos a realidade passa a ser vista de forma distorcida, em que indivíduos e coisas tendem a generalizações indevidas, abusivas ou prematuras. No caso de Viver a Vida, as imagens negativas ultrapassam o horário nobre e acabam fazendo parte do discurso de revistas e sites especializados em novelas. Tanto que no endereço eletrônico oficial da trama, por exemplo, o personagem de Benê, interpretado pelo ator Marcello Melo, é descrito como mau-caráter e está sempre envolvido com as pessoas erradas, além de guardar algumas passagens pela polícia. Ele gosta de Sandra, com quem tem um filho, mas seu objetivo é sempre levar vantagem.

Visão negativa

Quem acompanha a história de Manoel Carlos pode ter a tendência a construir mentalmente uma visão negativa, com padrões e formulações rígidos, a respeito da favela e de seus moradores. Já que o preconceito aparece arraigado também nas falas de outros personagens. Quando, por exemplo, Sandrinha e Benê decidem sair da favela de vez e vão morar na pensão da mãe de Ellen. Os dois se mudam assim que Benê deixa uma clínica clandestina, depois de se tratar de um ferimento de arma de fogo. O casal é recebido na vila, porém, Ellen não gosta da ideia e externa o medo de tê-los por perto. A personagem Yolanda, que vive no lugar, chega a comentar: ‘acho que vamos ter dias e noites muito divertidos por aqui’. A médica Ariane, que também é moradora da pensão, resume o medo de todos: ‘isso se não aparecerem bandidos e polícia atrás dele (Benê)’. Nesta passagem percebe-se que, mesmo numa tentativa de regeneração, Benê não consegue se livrar do estigma de ser morador de favela.

Ainda na mesma sequência, ao chegar no quarto onde irá permanecer com Sandrinha, Benê revista o local para saber se não há ninguém, desconfiando da boa vontade de todos. Sandrinha lhe dá uma bronca: ‘eles é que podiam estar preocupados em receber você. Ou já esqueceu que entrou uma vez no apartamento da Ellen, dando tiro?’Benê baixa a crista, Sandrinha amolece e insiste para que ele mude de vida: ‘pega o caminho certo, Benê, enquanto é tempo. Enquanto tá vivo!’. Os dois selam a paz com um abraço. Mais uma vez a novela faz questão de lembrar quem é o ex-traficante, evidenciando o quanto será difícil para o personagem desligar-se do seu passado criminoso.

A concepção de que a favela é um local fadado à violência fica evidente em diversas cenas do folhetim eletrônico. Em uma delas, depois que o marido, Benê, foi agredido, Sandrinha perde tudo, inclusive o barraco, que foi todo quebrado pelos bandidos. Ao saber disso, Edite, mãe de Sandrinha, sai de Búzios e vai ao encontro da filha. Ela pede que a filha volte para casa e deixe o barraco, mas Sandrinha se recusa, já que quer ficar perto de Benê, que está sendo cuidado por um médico clandestino da comunidade. Em seu discurso, Edite não cansa de enfatizar o quanto é perigoso morar na favela. Sendo assim, a personagem de Manoel Carlos confirma no imaginário do telespectador a relação entre criminalidade e periferia. A carga negativa ganha força, inclusive, no nome de um dos personagens, o Coisa Ruim, que é morador da favela e comparsa de Benê.

Capacitação para leitura de textos culturais

Desta maneira, presume-se que a novela corrobora para que seu público crie sua imagem particular do território denominado favela. Uma vez que o espectador não tem acesso ao local de verdade, mas sim a sua representação constituída por meio da mediação televisiva. Este acesso por meio do discurso originado na mídia, muitas vezes calcado no artifício da espetacularização, pode formar uma falsa percepção da realidade e visão distorcida da favela e de seus moradores. A periferia vista através do horário nobre pode ser que se pareça mais com aquela enxergada sob o olhar da classe média. A identidade do favelado exibida na tela, por meio do personagem Benê, repleta de estereótipo, costuma ter consequências nas relações humanas na sociedade, uma vez que o indivíduo da periferia é apresentado com uma conotação violenta, gerando um símbolo renegado pela grande maioria do público. Para Corrêa (2006), apenas o fato de a favela ser chamada por outro nome que não o do bairro onde está inserida já é um deslocamento do resto da cidade.

Nesta direção, chega-se a conclusão de que a novela, ao atribuir ações de violência à periferia, tem a intenção de dar maior audiência para a emissora, gerando assim mais lucro no bolo publicitário, visto que a criminalidade espetacularizada funciona como atrativo para o público. Diante disso, torna-se necessário refletir a respeito da leitura que se faz dos textos culturais produzidos pelos produtos midiáticos. Como bem lembra Douglas Kellner (2001), numa cultura da imagem dos meios de comunicação de massa, são as representações que ajudam a constituir a visão de mundo do indivíduo, o seu senso de identidade e sexo, consumando estilos e modos de vida, bem como pensamentos e ações sociopolíticas. Kellner pontua que a ideologia é, pois, tanto um processo de representação, figuração, imagem e retórica quanto um processo de discursos e ideias.

Portanto, é necessário que as pessoas sejam capacitadas para discernir sobre as mensagens, valores e ideologias que constituem a cultura divulgada pelos meios de comunicação. Acredita-se que assim possa haver uma maior reflexão por parte do público consumidor de novelas, tentendo a sair da passividade. Espera-se, com isso, que o telespectador possa romper com as estruturas fixas e seja incentivado a pensar a diversidade e contribuir para que haja, realmente, benéficas transformações sociais.

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Jornalista, especialista em Arte, Cultura e Educação, repórter do jornal JF Hoje, Juiz de Fora, MG