Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A primeira vítima é a verdade

Desde que o governo apresentou o anteprojeto da lei que transforma a Agência Nacional do Cinema (Ancine) em Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav), em agosto de 2004, ficou claro que um importante campo de batalha estaria situado na mídia.

A mídia foi, na verdade, o primeiro entre todos os campos de batalha. Ela começou a manifestar-se sobre o assunto antes mesmo de sua discussão no âmbito do Conselho Superior de Cinema (CSC), que é o foro adequado. E manifestou-se com tanta veemência – mas ao mesmo tempo com tanta falta de informação – que acabou criando quase que um sentimento nacional sobre a questão da Ancinav, embora tenha produzido quase nenhuma massa crítica sobre o projeto.

Passados quatro meses, 12 reuniões e mais de 110 horas de discussão no CSC, o projeto foi bem aprimorado em relação à sua configuração inicial. Deveria ter sido discutido no pleno do Conselho (isto é, os 18 integrantes da sociedade civil mais os 9 ministros de Estado) na quinta-feira, 16/12. Mas a reunião foi adiada, o que deu margem a especulações.

A versão oficial é que não foi possível conciliar a agenda dos 9 ministros para essa data. Outras versões falam de pressões vindas de todos os lados, principalmente dos radiodifusores, para que o envio do projeto ao presidente da República seja protelado tanto quanto possível. E até para que o presidente desista completamente de sua intenção de enviar o projeto da criação da Ancinav ao Congresso Nacional.

Nesse contexto, a batalha na mídia ganhou em intensidade. Mas há indícios de que tenha perdido mais ainda em substância. Como em qualquer outra guerra, a primeira vítima está sendo a verdade.

A isenção é possível?

O assunto acabou se transformando num grande desafio para a mídia. É possível, por exemplo, haver cobertura imparcial de um jornal, se uma emissora de TV do mesmo grupo é uma firme antagonista do projeto?

Os que defendem o projeto da Ancinav tentam demonstrar que as emissoras de televisão não deveriam estar preocupadas com ele na forma em que se encontra hoje. É uma tese perfeitamente defensável. Na versão que foi enviada aos ministros, não há resquícios de dirigismo, nem de interferência sobre o conteúdo, nem limitações em relação à dominação de mercado, nem mesmo ameaças à liberdade dos empresários de comunicação no que diga respeito ao controle cruzado dos meios.

As emissoras têm resistido a qualquer forma de regulação que as lembre de que uma concessão para a difusão e comercialização de conteúdo audiovisual não equivale a uma licença para monopolizar a produção. Elas têm tido, sobretudo, dificuldade para se reconhecerem como as agentes mais importantes para as mudanças de base na cultura televisiva vigente no país, que seriam benéficas para todo o ambiente televisivo – portanto, também para as emissoras.

O modelo atual desestimula a diversidade da produção e tem gerado resultados ruins tanto para a qualidade da programação quanto para o resultado financeiro da maioria das emissoras. Na maior parte dos modelos vigentes na Europa e nos EUA, onde existem parcerias efetivas entre as emissoras e os produtores, os resultados artísticos e financeiros são bem melhores. Justamente por isso as emissoras de televisão estariam entre as maiores beneficiárias da mudança dessa cultura – embora, ainda assim, é um direito delas serem contra o projeto da Ancinav. O debate está instalado – e as emissoras de televisão são um de seus protagonistas.

O fato de a questão da propriedade cruzada dos meios de comunicação não estar em discussão no projeto da Ancinav deveria ser um grande estímulo a que os jornais – todos os jornais, sobretudo os de maior circulação e credibilidade – dedicarem a ele um tratamento imparcial, ainda que manifestando, em editoriais, a posição das empresas a que pertencem.

Há dúvidas, porém, de que isso esteja acontecendo. Na quinta-feira (16/12), dia originalmente marcado para a reunião do pleno do CSC com os 9 ministros, O Globo publicou matéria sob o título ‘Artistas e intelectuais criticam ação da Ancinav’ [veja íntegra na rubrica Entre Aspas, nesta edição]. O texto diz respeito a um ciclo de debates promovido desde o dia anterior pelo Fórum de Audiovisual e Cinema (FAC).

Explicação nos bastidores

O FAC é uma nova federação que reúne 13 entidades do meio audiovisual (e não 13 mil, como diz a matéria). Foi criado há um mês pela dissidência de algumas entidades que até então faziam parte do Congresso Brasileiro de Cinema (CBC). Representa os interesses dos grandes produtores e distribuidores, além da Globo. Gosta de dizer que representa o PIB da indústria audiovisual brasileira. É uma federação legítima, formada por entidades legítimas, que defendem interesses legítimos. Mas no debate da Ancinav é apenas uma das peças, num tabuleiro onde se movimentam muitas outras.

Para o ciclo de debates promovido pelo FAC foram convidadas personalidades que se identificam com seus propósitos. Como o cineasta e jornalista Arnaldo Jabor, que ocupa a maior parte do texto, o diretor Roberto Farias e o antropólogo Roberto da Matta. O próprio João da Silveira, citado pelo texto como o ‘único representante do governo’, é na verdade o único opositor da Ancinav dentro da diretoria colegiada da Ancine.

O encontro, portanto, expôs, como toda legitimidade, as posições do FAC relativas à questão. Mas a cobertura dada pelo Globo está longe de deixar isso claro. A fiar-se nela, tem-se a impressão de que, como diz o título, os artistas e intelectuais brasileiros decidiram todos cerrar fileiras contra o projeto.

O teor da matéria foi duramente criticado no dia seguinte por muitas entidades ligadas ao processo, inclusive o próprio Congresso Brasileiro de Cinema. A Associação Brasileira de Documentaristas (ABD), que representa documentaristas e curtametragistas de todo o país, foi uma das mais enfáticas em seu comunicado:

‘A ABD (…) vem manifestar sua indignação e repúdio à maneira como parte da grande imprensa brasileira – especialmente as Organizações Globo – vem tratando o assunto Ancinav em suas matérias e editoriais. Não é mais possível que num país – cuja história recente nos mostra que alguns jornais eram obrigados pelo regime ditatorial a publicar receitas culinárias em lugar de notícias sobre torturas e outras violações dos direitos humanos – o poder do jornalismo de massa seja usado para difundir mentiras e escamotear as reais intenções de grupos poderosos até então hegemônicos no cinema e no audiovisual que circula em nossas telas grandes ou pequenas. O pior do fato é que este setor da imprensa, que se diz ‘livre’, não abre o mesmo espaço para opiniões que não estejam compactuadas com as suas. (…) Lamentamos profundamente que artistas e cineastas por quem temos profunda admiração artística (…) tenham incluído seu pensamento, sua moral e sua alma nos contratos de trabalho e patrocínio que possuem com a Rede Globo’.

No mesmo dia 17, O Estado de S.Paulo, na cobertura do mesmo evento, dava ao leitor uma informação bem mais equilibrada, ao começar do título: ‘Globo põe artistas na trincheira contra Ancinav’. E sobretudo no subtítulo: ‘Num evento em São Paulo, que teve a emissora nos bastidores, projeto do Minc foi dissecado. E enxovalhado’.

O texto explicava ao leitor que ‘na platéia do debate de anteontem, o que chamava a atenção era a concentração de estrelas. Nos bastidores, a explicação: como está na linha de frente da trincheira, a TV Globo intimou grandes nomes de seu elenco a comparecer’.

Heliodora, Zdhanov e Goebbels

O Globo teria prestado melhor serviço ao seu leitor – e ao debate sobre uma questão controversa – se não omitisse essas informações. O fato é que o tema Ancinav permaneceu presente no jornal carioca pelas brechas mais improváveis.

No sábado (18/12), ao longo de um artigo que ocupava toda a primeira página do Segundo Caderno do jornal, a crítica de teatro Bárbara Heliodora analisava a decadência do teatro brasileiro afirmando que as lembranças do teatro de outros tempos fazem a crítica teatral temer pelo futuro das artes cênicas no Brasil. No último parágrafo do seu texto, Heliodora diz o seguinte:

‘O teatro é de tal modo ignorado pelos poderes públicos que pode passar como não sendo relevante para ele o lastimável e assustador projeto da Ancinav, nitidamente inspirado no que há de pior em Zdhanov e Goebels [sic]’.

É difícil saber o que levou Bárbara Heliodora a se referir ao assunto, ainda mais no contexto de algo tão diferente, e sobretudo quem pegou mais pesado: se ela – que não explica o que há no projeto que represente o pior do chefe da censura de Stalin e do chefe da propaganda (na verdade Goebbels) de Hitler – ou O Globo. O fato é que as opiniões de Heliodora sobre a Ancinav ocupavam apenas 11 linhas – mas ganharam chamada na primeira página.

No mesmo dia, Jorge Bastos Moreno defendia Gilberto Gil, rebaixado, segundo ele, a ‘crooner do governo’ e dizia: ‘Isso é uma exploração, aviltação, mais valia (…) uma pura Ancinav’.

Legitimidade e informação

A guerra da informação é mera etapa de uma estratégia que começa na ação dentro do Conselho Superior de Cinema, passa pela criação de uma federação representativa como o FAC, pelo estímulo a que artistas conhecidos do público manifestem-se contra o projeto, vai ter continuidade no encaminhamento de substitutivo ao ministro Gilberto Gil, na tentativa de desqualificação do projeto original junto ao ministro, e, finalmente, na pressão sobre o Legislativo.

A Globo está exercendo um direito legítimo (ainda que politicamente possa estar equivocada) em se posicionar contra o projeto da Ancinav, assim como qualquer jornal, inclusive O Globo, tem o legítimo direito de manifestar sua opinião sobre o assunto – e é bom que o faça. Mas ao se examinar se a mídia está usando de maneira justa a complexa dicotomia entre a defesa do que pensa e a defesa da informação plena ao leitor sobre um assunto da qual ela é também protagonista, verifica-se que isso não está acontecendo.

A mídia impressa tem uma grande chance de usar esse episódio para demonstrar sua independência em relação aos interesses das corporações que a abrigam – o que é uma praxe, aliás, na grande imprensa norte-americana. Mas, para o leitor, o projeto do Ministério da Cultura ainda está sendo apresentado como um cerceador da liberdade de expressão, contra o qual toda a classe artística está se manifestando. Isto não é verdade, assim como não seria verdadeiro afirmar que a categoria inteira está fechada com o projeto – o que várias coberturas das reuniões do CBC ocorridas durante o Festival de Cinema de Brasília, realizado há duas semanas, deixaram transparecer ,– menos por compromisso do que por falta de competência.

A imprensa está jogando um jogo no qual ela não é protagonista direta, como as emissoras de TV. Um jogo em que podem existir, para os jornais e revistas, grandes vitórias. Mas também perdas maiores do que as que as televisões estão imaginando que elas próprias possam ser vítimas. A maior das vitórias consiste em municiar o leitor de informações completas. A maior das perdas reside na perda da confiança desse leitor.