“Questão social é caso de polícia.” Assim o ex-presidente brasileiro Washington Luís resumiu a postura que adotava contra os incipientes movimentos sociais que incomodavam seu governo, de 1926 a 1930. Passados mais de 70 anos do célebre disparate, o que vemos é que grande parte da imprensa brasileira ainda pensa tal qual o proeminente ícone da República Velha.
Um vislumbre das matérias relativas ao tema no Jornal Nacional, telejornal orgulhoso de sua suposta isenção e objetividade, mostra que o carro-chefe do jornalismo global tem tratado sistematicamente os movimentos sociais, com destaque para o Movimento dos Sem-terra (MST), como iniciativas sempre raivosas e criminosas. É certo que por vezes o movimento dá razões para isso, executando ações de caráter altamente reprováveis (vide a destruição do material de pesquisa da Aracruz Celulose e a invasão da Câmara por um braço desgarrado do movimento, o MLST).
Mas, por mais equivocados que sejam seus métodos, o MST é um movimento legítimo. Luta pelos interesses do enorme contingente da população que quer uma propriedade rural e é um fator de pressão crucial para que os governos executem a reforma agrária e respeitem a função social da terra, como exige a Constituição. E isso o JN não mostra. O MST aparece no jornal sempre como um grupo de invasores que comete crimes. A arte que ilustra as chamadas de Willian Bonner e Fátima Bernardes sempre mostra a sombra de homens de boné sobre uma cerca arrebentada. Fica impossível qualquer identificação do público com tal estirpe de “bárbaros”.
Movimento, não quadrilha
Pesquisa inédita organizada pelos professores Flávia Biroli e Luis Felipe Miguel, do Instituto de Ciência Política da UnB, aponta que, entre março e maio de 2006, apenas 20 matérias do JN tiveram como tema os movimentos sociais, 2,2% do total. Já as reportagens de polícia ocuparam 10,4% do noticiário, 96 matérias. Os números ainda precisam ser consolidados, mas a pesquisa tem indicado que, durante esses três meses, as atividades do MST apareceram na absoluta maioria das vezes como um caso de polícia, com a fala constante de um delegado encarregado de citar a pena a que os sem-terra estavam sujeitos.
Pesquisas anteriores tem confirmado o fenômeno. Estudo de Alessandra Aldé em 2004 sobre a cobertura do MST pelo TJ Brasil e o JN notou que os dois telejornais ressaltaram os elementos de violência, perigo e conflito do movimento. O JN focou ainda na crítica moral do movimento, reclamando de sua irracionalidade e irresponsabilidade. Ao adotar só uma maneira de ver e mostrar um movimento social de tamanha importância para a história recente do país, o JN cai numa encruzilhada ética. O telejornalismo global é a única fonte de acesso à informação de milhões de brasileiros. Sua responsabilidade para informar sem doutrinar é enorme. Ainda mais quando empunha a bandeira da imparcialidade.
Ninguém está pedindo para o JN abraçar a causa nem concordar com as ações do MST. Só se espera que o jornal tenha a decência de deixar seus telespectadores saberem que aquilo se trata de um movimento social, e não de uma quadrilha.
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Estudante de Jornalismo da Universidade de Brasília