Creio que foi a antropóloga Ondina Fachel Leal quem, pela primeira vez no Brasil, discutiu em sua dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 1983, a tese de que ‘o lugar que a TV ocupa na vida das pessoas e o lugar que o televisor ocupa nas casas das pessoas estão intimamente relacionados’. Isto, portanto, não é novidade (cf. A leitura social da novela das oito, Vozes, 1986).
Da mesma forma, sabemos faz tempo que o televisor transformou-se num ‘eletrodoméstico’ indispensável como o fogão e a geladeira – ou até mais indispensável do que o fogão e a geladeira. Na verdade, há mais domicílios brasileiros que possuem pelo menos um aparelho receptor de televisão do que domicílios que possuem geladeiras ou rede de esgoto (cf. Censo IBGE 2000).
Nos últimos 20 anos, a novidade – se houver – é a constatação do lugar que o televisor passou a ocupar também fora de casa, nos mais diferentes espaços. E, sobretudo, o fato de que o televisor não é um ‘eletrodoméstico’ qualquer. Ele é um ‘eletrodoméstico’ onipresente que ‘fala’ e constrói a representação das coisas e do cotidiano. Fornece o conteúdo e orienta, portanto, não só a sociabilidade entre as pessoas, mas em grande parte forma a opinião dessas pessoas sobre os mais variados assuntos. Políticos, inclusive.
A mesma rede
Acabo de fazer uma longa viagem pelo interior de importante estado brasileiro. Foram mais de 2000 km de sul a norte e de leste a oeste por estradas e cidades pequenas, médias e grandes. Além de casas de família de classe média e hotéis de poucas e muitas estrelas, as circunstâncias me levaram a aeroportos, bancos, hospitais e consultórios, rodoviárias, postos de gasolina, bares e restaurantes em cidades e nas estradas.
Aos poucos fui me dando conta de que havia algo em comum nesses espaços – públicos e privados – independente de pertencerem ao ‘universo popular’ ou a ‘outros universos’, como na etnografia original de Ondina Fachel: a soberania incontestável do televisor.
O televisor está lá, absoluto, reinando entre os objetos – e também entre as pessoas. Em posição de centralidade, geralmente acima de todos os outros ‘eletrodomésticos’, suspenso na parede, sempre ligado e com o som numa altura que quase ‘sufoca’ as eventuais conversas face-a-face entre as pessoas.
Mas o televisor não está apenas ligado. Ele está sempre ligado na mesma rede privada de televisão. A onipresença não é só da televisão. É de uma televisão específica.
Contradição permanente
Essas constatações in loco – para além das pesquisas de audiência e dos textos acadêmicos – faz com que experimentemos em nível pessoal um óbvio que não pode ser simplesmente naturalizado: a força extraordinária dessa tecnologia-instituição, explorada entre nós quase que exclusivamente por grupos privados.
O fenômeno televisivo no mundo contemporâneo está ainda muito além de nossa – críticos e practitioners – compreensão plena. Sua incrível capacidade de atrair as pessoas, de transformar-se em referência das rotinas domésticas, de conduzir a prosa despretensiosa entre familiares e amigos.
Em países como o Brasil, onde grupos privados controlam 80% (oitenta por cento!) das emissoras de TV [cf. boletim e-Forum nº 56, do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC)], a contradição fundamental entre uma mídia que pertence aos interesses de mercado e opera como instrumento de acesso à esfera pública só poderá ser resolvida quando se cumprir o princípio constitucional da complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal – Artigo 223 da Constituição.
Até lá, continuaremos onde estamos. O televisor soberano não só no espaço da casa, mas também no espaço fora de casa. E uma TV privada dominante vivendo a contradição permanente entre atender aos interesses privados do mercado e ser, ao mesmo tempo, concessionária de um serviço público.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: Teoria e Política (Editora Fundação Perseu Abramo, 2ª ed., 2004)