Para os apocalípticos, depois do Relatório Hutton a TV Pública jamais será a mesma. Apocalípticos são em geral niilistas e niilistas não gostam de arregaçar as mangas para desenvolver soluções.
A BBC foi excessivamente penalizada no caso do suicídio de David Kelly enquanto o governo de Tony Blair saiu injustamente imaculado. O lorde-magistrado errou muito, como já foi mostrado à farta. Mas ignorar que a BBC foi arrogante, isto sim é capaz de levar o jornalismo público a um impasse que lhe pode ser fatal.
À TV Pública cabe estabelecer paradigmas capazes de criar na sociedade padrões de exigência que possam alterar o comportamento das redes comerciais. Se a TV Pública esquece o seu compromisso público, pluralista, e assume uma posição engajada, radical, deixa de ser alternativa para converter-se em clone da TV comercial.
A TV Pública é uma alternativa, na realidade é a única opção para contrabalançar a voracidade do sistema privado de mídia. Se foi colocada no pelourinho, como diz o escritor Mario Vargas Llosa (leia na rubrica Entre Aspas, desta edição) não significa que tenha sido condenada. Submeter-se ao escrutínio público é próprio de instituições responsáveis.
São as empresas privadas de mídia eletrônica que abominam o debate, recusam a critica, rejeitam qualquer forma de fiscalização e se abancam no Olimpo acima do bem e do mal. E o fazem porque esquecem que também elas são públicas. São concessões de um patrimônio coletivo, nacional, administrado pelo Estado e pelas quais devem pagar com uma atuação responsável.
Ser o que não é
Na semana passada tivemos um exemplo dramático da incapacidade do Estado brasileiro em coibir os abusos da programação televisiva comercial. Na quarta-feira (4/2), o Diário Oficial publicou um despacho assinado pelo diretor do Departamento de Classificação Indicativa do Ministério da Justiça no qual foram considerados ‘não recomendados para menores de 21 anos’ diversos programas policiais. Entre eles, dois com grandes índices de audiência: Cidade Alerta, da Record e Brasil Urgente, Bandeirantes – os três restantes, do mesmo gênero, são de Fortaleza, CE.
A informação publicada no dia seguinte, quinta, pela Folha (pág. E8) destacou o caráter inédito da decisão e revelou que o Ministério da Justiça já vinha pressionando as emissoras de TV a adaptarem-se às exigências. Como no Brasil há uma ojeriza generalizada a tudo o que é inédito e inovador, na sexta-feira foi publicada a revogação da medida saneadora (no Globo o assunto mereceu chamada de 1ª página e destaque na pág. 15). O diretor que assinou o despacho foi sumariamente demitido porque a reclassificação não fora submetida aos superiores – a Secretária Nacional de Justiça, Cláudia Chagas, e o ministro Márcio Thomaz Bastos).
Pela mesma matéria do Globo ficamos sabendo que o funcionário punido, Mozart Rodrigues da Silva, estava na função havia quatro anos. Portanto não era neófito, conhecia o assunto, sobretudo porque no governo anterior o ministro da Justiça José Gregori fez diversas ofensivas para promover uma reclassificação geral dos horários de exibição atendendo ao que estipula a Constituição.
Na mesma matéria revelou-se que no dia da publicação do Diário Oficial da União o próprio ministro da Justiça foi procurado por um grupo de deputados federais proprietários de emissoras, entre eles o ‘Bispo’ Rodrigues (PL-RJ), notoriamente envolvido com os lobbies evangélico e da mídia eletrônica.
O funcionário afastado deverá retornar à antiga função no Ministério de Ciência e Tecnologia. E aqui complica-se o governo:
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Assinar um despacho de tamanha relevância sem consulta aos superiores é falta grave. Falta grave pune-se com demissão sumária – mesmo na esfera estatal – e, não, com transferência.**
O governo evidentemente assustou-se com a reação dos deputados (sobretudo de um dos expoentes do partido do vice-presidente), mas também assustou-se com a possibilidade de que uma punição exemplar e severa acendesse os holofotes sobre algo que não queria discutir.**
Já na quinta-feira pela manhã, as empresas de mídia que seriam afetadas pela reclassificação informavam aos jornalistas interessados em acompanhar os desdobramentos das revelações da Folha que o governo decidira revogar o despacho.Revogou e abafou. Mas, se depender deste Observatório, o caso não será encerrado. Está patente que o governo preparava algo drástico em matéria de reclassificação de horários – antiga reivindicação da sociedade defendida pela grande maioria dos parlamentares do PT. Patente ficou também a indecisão do governo em levar adiante o projeto.
Esta indecisão torna-se ainda mais grave quando se sabe que dentro de alguns dias será anunciada a decisão do BNDES sobre a abertura de uma linha crédito às empresas de mídia. As sondagens de opinião indicam que a sociedade brasileira admitirá o privilégio à indústria midiática desde que sejam oferecidas contrapartidas sociais. No caso da TV, essas contrapartidas situam-se basicamente no plano da qualidade.
Nestas circunstâncias, o afrouxamento na reclassificação é duplamente desanimador. Sinaliza uma vitória da baixaria, desnuda a falta de apetite para exercer os indispensáveis controles e reagir aos grupos de pressão que apostam no status quo. A mídia vai para os guichês do crédito oficial despreocupada e desobrigada. Como se fosse credora e, não, devedora relapsa.
Paradigma da qualidade
Aqui entra a TV Pública. O Brasil dispõe de duas grandes redes de TV – a TVE e a Cultura – com um potencial fabuloso. Embora independentes, são convergentes sobretudo na disposição de exercer plenamente sua missão social.
Parte da opinião pública pode deleitar-se com o Big Brother mas outra parte ponderável acha que merece coisa melhor. Então, por que beneficiar um grupo em detrimento do outro? Onde fica o senso de justiça e o equilíbrio?
A TVE acaba de divulgar os resultados de um seminário sobre o papel da TV Pública; a TV Cultura está inaugurando a nova grade de programação com especial ênfase no jornalismo (veja remissões abaixo). Ambas estão prontas para atender à demanda de uma TV pública de qualidade, ambas têm competência e disposição para desempenhar o seu papel alternativo numa sociedade pluralista.
Mesmo numa Inglaterra conflagrada pela disputa em torno do ‘esquentamento’ de informações sobre os arsenais de Saddam Hussein há um consenso em torno da qualidade da rede pública de rádio e TV. Este é um consenso que os niilistas não querem enxergar. Este é um consenso que no Brasil a rede pública de TV deseja explorar.