Saturday, 30 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

A via-crúcis da produção independente

No Brasil, as produções televisivas feitas por produtores independentes – aqueles que não têm vínculos com as emissoras – estão praticamente fora das grades de programação das redes de TV. Por aqui, quase ninguém estranha esse fato e poucos acham que essa não é ordem natural das coisas. A situação é mais séria caso se leve em conta a programação televisiva ficcional, como minisséries, novelas, filmes e seriados brasileiros. À exceção de experiências embrionárias recentes, todos esses programas costumam ser produzidos pelas próprias emissoras, ou melhor, pelas emissoras cabeça-de-rede, quase sempre situadas no eixo Rio-São Paulo.

Façamos um exercício de comparação com outro setor igualmente importante para o país: as rodovias. Imagine que uma grande montadora de automóveis viesse a adquirir a concessão de uma rodovia federal privatizada e que, assim fazendo, deixasse passar por suas estradas apenas os carros de sua marca; ou que fizesse muitas exigências ou cobrasse pedágio mais caro para que carros de outras montadoras pudessem trafegar na estrada sob sua concessão. Naturalmente, essas seriam exigências prontamente consideradas como descabidas. Afinal, rodovias federais são bens públicos e, como tais, devem atender ao interesse público de possibilitar e facilitar a mobilidade de produtos e pessoas.

A porção do espectro eletromagnético que as emissoras receberam do Estado como concessão são como as estradas descritas acima. Os programas de ficção que passam por essas ‘estradas’ são, à exceção dos programas estrangeiros, normalmente produzidos pelas próprias emissoras. Ocorre que o controle exercido pelas emissoras sobre essas ‘estradas’ tem impedido, historicamente, que programas feitos por produtores independentes nacionais estejam presentes nas grades de programação que levam informação, cultura e entretenimento diário a milhões de brasileiros.

A analogia entre estradas e televisão é apenas um exercício de comparação, no qual devem ser guardadas as devidas diferenças. Afinal, ao contrário das rodovias, na televisão a oferta do serviço não é homogênea, pois sempre há (ou deveria haver) diferenças importantes na programação de uma concessionária para outra. Não se trata, pois, de um monopólio. O telespectador pode, sempre, mudar de canal com facilidade, apesar do fato de cerca de 50% da audiência preferir quase sempre estar sintonizada em uma mesma concessionária. Ademais, a influência cultural diária exercida pelas concessionárias de TV sobre milhões de brasileiros não pode ser comparada à influência que poderia ser exercida pelas concessionárias de rodovias.

A estrutura de produção da televisão brasileira é resultado da história desse veículo no país. As principais emissoras de TV tiveram, em seu passado, fortes ligações com as estações de rádio, cuja programação, de programas musicais a novelas, era produzida internamente. É uma história diferente da televisão dos Estados Unidos, por exemplo, onde sempre existiram relações e sinergias, mesmo que indiretas, entre produtores de imagens cinematográficas e emissoras de televisão. Nesse país, seja pela dinâmica do mercado, seja por força de lei, os primeiros passaram a atender a demanda das últimas, tanto na produção de filmes como de programas formatados diretamente para a televisão.

Expressão plural

É certo que as relações entre produtores independentes e emissoras de TV nos Estados Unidos, pátria-mãe das emissoras comerciais, estiveram longe de serem harmônicas. As fortes divergências entre independentes e redes de TV foram resolvidas pela agência estatal de regulamentação das comunicações. Em 1970, o Federal Communications Comission (FCC) baixou o Financial Interest and Syndication Rules (Fin-Syn),limitando o número de horas que as redes poderiam veicular de programação própria produzidas in house, à exceção de programas de informação. O Fin-Synsentenciou ainda que a propriedade dos direitos dos programas exibidos pelas redes deveria retornar para a empresa produtora depois de um número específico de exibições. Outras regras foram estabelecidas na mesma época para que as emissoras emitissem programação regional em horário nobre.

As regras do Fin-Syn tiveram validade até 1995, quando as redes abertas, então com 65% da audiência total, já enfrentavam a séria concorrência dos canais de televisão por assinatura, presentes na maior parte das residências do país. Enquanto esteve vigente, o Fin-Syn permitiu o desenvolvimento, inicialmente nos Estados Unidos e posteriormente em todo o mundo, de um mercado altamente dinâmico de programas de televisão. O mercado de syndication e a venda repetida dos mesmos programas (na maior parte das vezes já pagos em seus custos de produção), seja no mercado interno, seja no resto do mundo, foram fundamentais para a lucratividade dos produtores e para o fortalecimento de toda a cadeia produtiva de obras audiovisuais no país.

Na Europa, uma legislação comunitária em defesa da produção independente na televisão foi sendo construída com a progressiva privatização do espaço ‘herteziano’ e a crescente competição entre redes públicas e privadas. No âmbito regulatório supranacional, a União Européia, através da diretiva denominada ‘Televisão Sem Fronteiras’ de 1997, estabeleceu que todos os Estadosmembros deveriam assegurar que suas redes de radiodifusão reservassem à produção independente ao menos 10% do tempo de programação transmitido ou, alternativamente, 10% do orçamento destinado à programação. A diretriz refere-se sobretudo a obras audiovisuais de ficção, deixando de fora notícias, esportes, publicidade, televendas, etc. Além da regulamentação comunitária, alguns Estados-membros já protegiam a produção independente e atualmente determinam percentuais maiores de veiculação de produtos audiovisuais realizados por produtoras independentes. No Reino Unido, por exemplo, esse percentual obrigatório é de 25% do tempo de programação.

Do ponto de vista econômico, as leis de proteção à produção independente nos países desenvolvidos – a exemplo do que ocorre em outros setores da economia – procuram assegurar a concorrência na área da produção de programas de televisão. Busca-se assegurar que os produtores independentes tenham, efetivamente, acesso aos meios de distribuição de sua produção. As concessionárias de emissoras de TV devem exibir não somente os programas que produzem – tal como no exemplo das concessões rodoviárias.

Há também o aspecto político-cultural: as leis que regem o acesso dos produtores independentes às grades de programação das emissoras de TV dizem respeito a questões como a liberdade e a pluralidade da expressão artística, cultural e política. Pressupõe-se que as produções ficcionais independentes podem trazer à televisão diversidade de opiniões e modos diferentes de interpretar a realidade, agregando inovações na linguagem televisiva.

Projetos promissores

Nos países com mercados televisivos mais desenvolvidos, fatores como custos e qualidade da produção e o grau de controle sobre o produto final também são importantes na decisão das emissoras em produzir internamente, comprar programas de produtores independentes ou associar-se a esses últimos em co-produções. À emissora, cabe escolher, dentre o que está disponível no mercado, os programas mais adequados à linha ‘editorial’ da sua grade de programação ou os produtores independentes que se identifiquem com essa linha. Nas co-produções o contato entre emissora e produtores independentes é geralmente bastante estreito, desde o momento da criação dos programas. Contudo, em alguns países, as emissoras são impedidas de deter a maior parte dos direitos patrimoniais do produto final das co-produções.

No Brasil, o debate sobre o espaço da produção independente nacional nas grades de programação das redes de TV é embrionário, mas tem ganhado força. Impulsionam o debate as promessas de regulamentação do artigo 221 da Constituição, que versa sobre a produção independente, e de um novo marco regulatório para o audiovisual no país. Para os produtores independentes são duas batalhas que seguem em paralelo, respectivamente no poder legislativo e no poder executivo.

A crise financeira que tem afetado as grandes redes complementa o quadro, abrindo a perspectiva para novos modos de produção na televisão brasileira. Tal como ocorre em outros setores da economia, processos de terceirização produtiva trazem possibilidades de redução significativa de custos e de riscos associados à produção. Na Argentina, por exemplo, ante o cenário de investimento estrangeiro em redes de TV e o acirramento da competição pela audiência que caracterizou o fim da última década, as emissoras abertas abriram suas grades de programação para produções ficcionais independentes que passaram a ocupar progressivamente o horário nobre.

Ademais, a crise financeira pode fazer com que as emissoras brasileiras tornem-se um pouco mais permeáveis à discussão sobre suas grades de programação. As redes de TV estão em busca da concessão de empréstimos facilitados por parte do governo e todo e qualquer apoio público que justifique esses empréstimos parece ser bem vindo no momento.

Seja por pressões econômicas ou políticas, as redes brasileiras de TV começam a se abrir para a produção ficcional nacional não produzida internamente. Experiências bem-sucedidas, tais como Cidade dos Homens e Turma do Gueto, pavimentam o caminho para outros projetos promissores que envolvam os produtores independentes e as emissoras de TV.

Problemas e gargalos

Mas é preciso mais do que o que se tem obtido com o livre jogo do mercado ou com as pressões políticas conjunturais. A história da indústria audiovisual mostra que mercados audiovisuais fortes e pujantes somente existem onde as regulamentações dos Estados se fizeram presentes – mesmo nos Estados Unidos, terra do ‘livre mercado’. Questões relacionadas à produção independente são de fundamental importância para o futuro do audiovisual no país. A diversidade e qualidade da programação, o acesso da produção independente às grades de programação – tanto nos canais abertos como nos canais pagos –, a posse dos direitos patrimoniais dessa produção, a proteção para programadores independentes de canais de TV, critérios de profissionalismo para a concessão de emissoras, etc., são assuntos que necessitam ser tratados dentre de um novo marco regulatório para todo o audiovisual brasileiro. Quiçá, a possibilidade da criação da Ancinav, no lugar da Ancine, abra margem para a discussão de tais questões.

Mesmo a falta de marco regulatório não impedirá que as questões levantadas acima venham à tona. O audiovisual vivencia um processo de grande transformação, dado pelo motor da tecnologia digital. Quando as discussões sobre a televisão digital terrestre brasileira ultrapassarem o âmbito puramente tecnológico, se desnudarão muitos dos problemas e gargalos apresentados pela estrutura de televisão construída no país. Quando as discussões chegarem ao verdadeiro cerne da questão – o conteúdo que circulará pela TV digital – ficará claro que o desenvolvimento de toda a cadeia produtiva da indústria audiovisual brasileira dependerá em grande medida da força e do vigor do elo mais fraco dessa cadeia: a produção independente.

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Economista, doutor pela ECO-UFRJ, pesquisador associado ao LABTeC/UFRJ, e professor de Economia da Indústria Audiovisual na ESPM-RJ