Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A gaiola se abre. E a audiência voa

A entrevista de Aguinaldo Silva para a Folha de S. Paulo de quinta-feira (‘O 2 Caras desaba; autor culpa DVD e Orkut’, 4/10/2007) sintetiza o que todos sabem, mas as emissoras de televisão fingem que não existe: a era da massificação acabou.

A novela das 8 está fazendo 35 pontos, o que não acontecia há dez anos. Mas não está sozinha. O Fantástico estacionou em pouco mais de 20 pontos. Nos bons tempos chegava a cravar 65. O Casseta e Planeta não passa dos 25. E o próprio Jornal Nacional está amargando a casa dos 30. A Record e o SBT disputam o segundo lugar com médias mensais entre os 6 e 7 pontos, como lembra a reportagem de capa da Veja com data de capa de 10 de outubro.

O público não está migrando para outras redes. Está caminhando na direção de outras mídias. ‘Agora até as criancinhas estão viciadas em Orkut’, diz Aguinaldo. Não só em Orkut e não só as criancinhas. As pessoas estão desligando seus aparelhos de televisão e ligando seus computadores. Cerca de 36% dos televisores brasileiros estão desligados em pleno horário nobre. Isso nunca havia acontecido. O índice vai cair muito na medida em que o brasileiro tenha acesso à internet em banda larga. E os televisores que estiverem ligados estarão cada vez menos construindo o imenso bloco dos cidadãos que precisam ser parte da audiência massiva para fazer parte da sociedade.

Televisão pelo celular

A Telefônica, a BrT, a Oi, todas as teles, enfim, estão lançando suas grades de IPTV, ainda timidamente, mas que em pouco tempo darão acesso à programação de TV a todos que tiverem uma linha telefônica. O tempo em que 80% da sociedade brasileira estava consumindo a mesma informação ao mesmo tempo é parte da história. Não voltará jamais. As crianças que estão nascendo agora demorarão para acreditar que isso um dia aconteceu.

A personalização do consumo midiático é um fato extraordinário num país que tem a televisão aberta mais abrangente do mundo. (Nos EUA, as três grandes redes abertas navegam hoje em torno dos 7% para cada uma.) As transmissões digitais vão potencializar esse quadro. Por isso as emissoras temem tanto qualquer passo que possa impactar o modelo de negócios estabelecido há mais de 50 anos.

Mas o impacto é inevitável. A grande batalha será travada nas transmissões para receptores móveis e portáteis. As transmissões começam oficialmente em 2 de dezembro, mas desde maio a Globo e a Band vêm colocando o sinal digital no ar. Ele pode ser captado hoje por qualquer um que disponha de um receptor digital portátil. Ele é do tamanho de um celular. Não pode ser encontrado ainda nas Casas Bahia, mas está disponível em qualquer esquina do Japão. A partir de 2008 será, sim, o celular. A partir de então, o horário nobre (que concentra mais de 80% da receita das emissoras) não será mais o período em que o cidadão está em casa, mas todos os períodos em que ele estiver ocioso, seja no trânsito ou no intervalo para o lanche. No Japão, 40% da audiência televisiva já se dá pelo celular ou por qualquer outro tipo de receptor portátil. O japonês, em grande medida, já prefere ver televisão pelo seu aparelho de bolso, mesmo quando está em casa.

Procurando sua turma

Não é simplesmente uma tendência local. Ganha um doce quem encontrar um garoto de 15 anos que veja hoje televisão seqüencialmente. Que se sente com a família diante de um aparelho, como induziam os anúncios de revistas dos anos 50.

O consumo se individualizou e vai se individualizar mais e mais, fazendo com que a curva assintótica, conhecida como cauda longa, se estenda ao infinito. Mas as emissoras não perceberam isso – ou não querem acreditar no que estão vendo. Ficam espantadas quando o garoto não está vendo Paraíso Tropical. Acham que Duas Caras vai resolver o problema. Mas esse problema não mais será resolvido.

Até porque a fuga da audiência não é o problema, mas a solução, como erroneamente dizia Darcy Ribeiro sobre as favelas. A exacerbação da televisão generalista foi lida no Brasil como a necessidade de se tratar o espectador como débil mental. De tanto fazer isso, as emissoras passaram a acreditar que o espectador era mesmo um idiota. Compuseram para ele um cardápio oligofrênico que expressa muito mais o que os realizadores são capazes de fazer do que aquilo que o povo é capaz de entender.

A expansão da oferta do produto audiovisual está simplesmente fazendo com que a verdade venha à tona. O jovem, que tem acesso a inúmeras fontes de informação, sobretudo mas não apenas pela web, olha para a sua televisão e tudo aquilo lhe parece uma idiotice. Bota o seu fone de ouvido e vai procurar a sua turma.

Virando as costas

Não há um único argumento no mundo para sugerir que ele esteja errado. Durante muito tempo a sociedade brasileira via a sua televisão e não sabia o que poderia existir do lado de fora da gaiola. O que as novas mídias fizeram foi abrir a porta da gaiola. Levará menos de uma geração para que o modelo de programação desenvolvido pelas emissoras vá parar num museu antropológico.

Disso não escapa, é claro, a qualidade da informação jornalística. Antes mesmo que a informação objetiva apareça, o tratamento dado a quem vai consumi-la é bizarro. Que credibilidade pode ter quem se dirige a nós como idiotas?

O entorpecimento promovido pela própria televisão – que faz com que o espectador, devidamente lobotomizado, pareça não perceber como está sendo tratado, pretenda não saber qual é o passado da fonte da informação ‘isenta’ que lhe está sendo passada – está tendo a sua resposta no comportamento das novas audiências, para as quais a gaiola está aberta e que se espantam, sim, vendo no televisor dos seus pais uma dramaturgia incrivelmente primária, um cardápio de atrações que parecem saídas de um circo de horrores, uma informação com sabor de hipocrisia que parece saída de um mundo construído sabe-se lá por quem.

Esse novo espectador está virando as costas a tudo isso. A informação que está procurando fala da sua tribo, dos seus anseios, da sua atitude, da sua visão do mundo, que certamente não é a visão filtrada pelos que estão comprometidos com a possibilidade de emburrecê-lo.

O problema não está no Duas Caras, mas no que essa novela – e toda a programação que gira em sua volta – representa. Ontem, quem não via essa programação não fazia parte do mundo. Hoje, é justamente o contrário.

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Jornalista