Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A telenovela de Nicolas Maduro

Em 1992, a atriz Daniella Perez foi apunhalada com 18 estocadas pelo ator Guilherme de Pádua e sua mulher Paula Thomaz. Ficção e realidade tinham virado uma coisa só. O personagem Bira queria se livrar de Yasmin, seu par romântico na novela De Corpo e Alma, escrita pela mãe de Daniella, Glória Perez. No camarim Guilherme/Bira chorava muito, eles haviam gravado a cena do fim do romance. Mordida de ciúmes, a mulher de Guilherme só enxergava Yasmin. No mesmo dia 28 de dezembro de 1992, Paula Thomaz acabou com o fantasma Yasmin, com a vida da atriz Daniella Perez, de 22 anos, e com a própria. Foi condenada com Guilherme a 19 anos de prisão. Esta é a confusão de Nicolas Maduro na Venezuela.

O presidente venezuelano acaba de condenar a telenovela De Todas Maneras Rosa por fomentar “antivalores da morte: o culto às armas, às drogas, à violência”. A intérprete da vilã Andreína é a ex-miss Venezuela Norkys Batista, que depois da onda de protestos e agressões a sua personagem provocada pela crítica de Maduro disse temer por sua segurança.

Maduro entra num terreno perigoso, embolar ficção e realidade, como fez há poucos meses ao discursar aos venezuelanos afirmando ter visto o rosto de Hugo Chávez nas escavações de uma obra do metrô de Caracas. Não foi a primeira vez. Quando era candidato à sucessão, Maduro jurou ter sido visitado por Chávez em forma de um passarinho – e, num país onde falta tudo, anunciou a criação de um Ministério da Suprema Felicidade. Confundir a população, enfraquecer a racionalidade e as mentes para demolir o espírito de revolta é uma técnica antiga. Ficção, fantasia e realidade não se misturam. E isso conduz a um beco só, a censura. Essa história nós conhecemos de sobra.

Mundo cor de rosa

Na telenovela Explode Coração (1996), a advogada Miriam Stanesco, cigana, recorreu à Justiça para impedir que Dara, a personagem de Teresa Seiblitz, perdesse a virgindade antes do casamento. A própria advogada garantia que se casou virgem aos 32 anos, como os ciganos devem fazer. Mas isso era sua vida real e ela não estava na novela. Miriam perdeu a guerra e Dara, a virgindade – entregou-se mesmo a Júlio Falcão como o público esperava.

A televisão revê seus tabus a cada novela. Dois anos antes da morte da filha, Gloria Perez derrubou mais um, ao estrear Barriga de Aluguel na Globo, em 1990. Em 1974, Dias Gomes só conseguiu levar o tema da inseminação artificial às 22 horas, na novela O Espigão. Campeão de problemas com a censura moral e política, Dias Gomes penou para exibir Mandala(1987), inspirada na obra de Sófocles Édipo Rei, o que aconteceu depois que a emissora deu garantias à Polícia Federal de que as cenas de incesto estavam banidas. Mas o tema voltou com força oito anos depois, em Engraçadinha (1995), apesar dos protestos das autoridades religiosas do país.

Em 1991, Dias Gomes conseguiu enfiar um ex-agente do SNI como protagonista em Araponga. Estava vitorioso, tinha vencido a censura de dez anos para estrear Roque Santeiro, em 1985, desfilando prefeitos, governadores e autoridades corruptas no Brasil numa sátira pesada à exploração política e comercial da fé popular.

Em 1994, uma cena da novela Pátria Minha foi alvo de um processo pesado pelo movido pelo Geledés, o Instituto da Mulher Negra de São Paulo. Foi quando Tarcísio Meira, no papel do empresário Raul Pelegrini, descobriu que alguém havia mexido no seu cofre e acusou o jardineiro Kennedy (Alexandre Moreno).

– Você mexeu no meu cofre, negro safado.

Diante de um Kennedy humilhado, chorando inocência, continuou:

– Você pensa que eu acredito em crioulo?

O Geledés queria que, na novela, Kennedy se dirigisse à delegacia especializada em crimes raciais do Rio de Janeiro para denunciar o patrão, o que há dez anos era uma prática incomum no Brasil. A Globo recorreu. Afinal, a legislação foi feita para funcionar no mundo real, não no reino das obras de ficção. A atriz Zezé Motta veio em favor da ficção: “A novela de Gilberto Braga presta um serviço à causa negra ao mostrar um problema que existe, o racismo. Há preconceito mesmo”.

Não existiria ficção e sim manuais de ética e boa educação onde todos os políticos seriam honestos, e não existiria traição se autor fosse obrigado a cumprir exigências e protestos. Sobre a mesma novela, o que revoltava o então comandante da TAM, Rolim Amaro, era a figura de Tarcísio Meira. “Não assisto. Os empresários que aparecem são sempre bandidos.”

Bajulação ao cubo

A verdade é que entre a tela e a vida real quem rouba a cena são sempre os vilões; e a novela interfere, sim, na vida do Brasil de carne e osso induzindo moda de roupas, corte e cor de cabelos e desejo de bens de consumo, provocando discussões sobre um tema tabu e mostrando mais sexo e agarração do que existe na vida real. Mas a mocinha não vai deixar de ser virgem porque a protagonista se entregou ao namorado na TV.

Agora a Globo hesita em permitir um beijo gay em Amor à Vida entre Félix (Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso) e a expectativa é enorme. Mas em 1987 a censura vetou a cena de homossexualismo em Vale Tudo. E quem saiu em primeiro lugar no Ibope foi a SBT de Silvio Santos, há dois anos e meio, quando Marcela (Luciana Vendramine) e Marina (Giselle Tigre) deram o primeiro beijo gay, com esfregação e tudo, em Amor e Revolução, novela das 22h15, censura 14 anos. Alguns países punem os homossexuais com a morte. E o que diria Maduro na Venezuela?

Censura foi a arma política da ditadura militar. O ex-diretor da Censura Federal, Coriolano Cabral Fagundes, dizia que a televisão induzia o adultério. E não era dos piores: acabou sendo chamado ao gabinete do diretor de Segurança da Polícia Federal por ter liberado o filme Dona Flor e Seus Dois Maridos, que cansa de passar na televisão. “Para liberar um filme desses vocês ou são corruptos ou são covardes”, berrou o general Façanha dos Reis.

Kung-Fu era acusado de subversão e Calabar, peça de Chico Buarque e Ruy Guerra sobre a invasão holandesa no século 17, foi transformada num processo volumoso só liberado em 1973, com cortes, para maiores de 18 anos. Para sustentar a tese de subversão, a Polícia Federal anexou o trecho de um livro que comprovava a traição de Domingos Fernandes Calabar. Ironia: o autor do livro Estudos Sociais, História do Brasil I era o historiador Sergio Buarque de Holanda, pai de Chico.

Dos anos 1960 a 1980 a censura interditou um número incalculável de obras de ficção acusados de “luz, cama, subversão”. Insubordinação. Segundo Dias Gomes, até a seca do Nordeste era proibida. Até Cebolinha, personagem inocente de Maurício de Souza, foi censurado num quadrinho em que tomava banho de chuveiro: sua nudez era um atentado à moral e aos bons costumes.

Resquício do Estado paternalista, hoje até dá para rir do que se fazia no Brasil e no mundo dependendo do código moral de cada cultura. Tarzan, que no original americano dos anos 1950 aparecia nu de costas nos Estados Unidos, na França ganhou folhagens nas nádegas. As Ações Católicas atuavam firme para apagar traços de languidez, mas tudo sem o menor critério. A igreja católica exercia enorme pressão em todo o mundo. Aqui, Je Vous Salue, Marie, polêmico filme de Jean-Luc Godard, foi vetado em 1986 por pressão da igreja católica… e por José Sarney, então presidente as República, depois da morte de Tancredo Neves.

Godard tinha ordens expressas para não ser exibido no Brasil. Não era o único taxado de pertencer à esquerda maoísta. O censor Waldemar de Souza já havia instruído a todos: Michelangelo Antonioni pertencia ao Movimento Mao Tse Tung italiano. Píer Paolo Pasolini era ex-líder da Juventude Esquerda. Costa Gavras era da ala da Esquerda Maoísta de Paris. Filmes como O Império dos Sentidos sofreram quatro vetos mesmo antes de chegar ao Brasil. Mas também não agradava aos censores a incitação ao feminismo e até o ufanismo da música Ninguém Segura Este País, de Iza de Almeida, que num estribilho citava “O presidente Garrastazu/ está com a razão…”. Tanta bajulação até pegou mal, cortaram o estribilho.

Como começou

A Censura vetou o musical Roda Viva de Chico Buarque em 1967 porque apresentava “bacanais, subversão, um coronel gordo tira o capacete e satisfaz necessidades fisiológicas sobre o mesmo, a Virgem Maria sobe ao palco com manto e halo sagrado”, e por aí vai. Mas a mesma censura que vetava os politizados Chico, Caetano e Gil censuraram um hino cantado por Roberto Carlos num compacto a ser entregue como brinde a cada comprador de detergente Gessy Lever na Semana da Pátria de 1972. Um cantor popular não podia cantar o Hino da Independência…

Não adiantava burlar: sem o carimbo da Censura, nada ia ao ar. Diálogos da novela O Outro (entre Yoná Magalhães e Francisco Cuoco, sentados na cama) e de Brega e Chique (Marília Pêra reclamando da traição do marido), ambas novelas da Globo, e Helena sobre exilados chilenos e Corpo Santo (cenas consideradas eróticas entre Cristiane Torloni e Reginaldo Farias), as duas da Manchete, eram canetadas pela Censura já em 1987. A Censura tinha acabado mas os censores continuavam, pegaram gosto. A TV devia “zelar pelos bons costumes”.

De repente só não usava o fio da tesoura quem não queria, e levou tempo para o país se acostumar com a liberdade que, segundo Jean-Paul Sartre na peça Huis-Clos (“Entre Quatro Paredes”), é a coisa mais difícil de praticar. Tudo isso para dizer do perigo do discurso de Nicolas Maduro. Porque tudo começou assim.

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Norma Couri é jornalista