Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Alternativas da TV aberta na era digital

Passagem de ano serve normalmente para efeitos fiscais e para que as pessoas que estejam frustradas com seus próprios desempenhos possam fazer promessas de ajustamento que jamais serão cumpridas. Mas poucos anos terão sido tão importantes quanto este que começa agora no que diz respeito à possibilidade de renovação da televisão e, mais do que isso, de toda a expressão audiovisual do país. Isso ocorre não pela troca do calendário, mas pelo extraordinário somatório de conquistas tecnológicas e mudanças de hábitos dos consumidores do produto audiovisual que acontecem neste momento.

A aposentadoria da era da televisão massiva, por exemplo, passa a ser bem visível. Demorou mais do que se esperava porque até há bem pouco tempo seria difícil imaginar a decadência um modelo de televisão aberta que já precisou de 65% ou 70% do mercado para viabilizar suas produções e chegou com freqüência a passar dos 85%. Pois ‘massivo’, em televisão aberta brasileira, hoje quer dizer 30%.

Se Glória Maria cai do Fantástico porque o programa despencou para 21%, a culpa obviamente não é da apresentadora, nem de qualquer outra pessoa que esteja construindo a atração. A culpa é dos novos tempos. O programa já flutuou acima dos 70%, mas isso não tornará a acontecer, simplesmente porque o mundo mudou. São novos tempos irreversíveis em que o público procura outras alternativas para ver televisão, mas sobretudo sai em busca de alternativas mais modernas à própria televisão.

Isso é muito bom para a sociedade. A televisão está colhendo o que plantou – e 2008 será um ano de grandes colheitas. O mote de que o público é burro e o conteúdo que lhe é ofertado tem que ser nivelado por baixo não encontra respaldo em qualquer dado científico. Ele é agressivo, estúpido, pernicioso e preconceituoso em relação a toda a sociedade. No Brasil, preconceito contra raça, cor, sexo ou religião pode levar o ofensor à cadeia. Mas preconceito que engloba tudo isso, não. Durante muitos anos, a televisão se viu livre para afirmar que público é gado – e induziu sua audiência a agir como tal, livrando-se de qualquer traço de auto-estima.

Foto no museu

O espectador tornou-se mesmo robotizado, incapaz de exprimir seu gosto porque o que ele conhecia da televisão era o que a televisão lhe ofertava. O que o meio espelhava não era a sociedade que estava fora dos estúdios, mas os construtores da programação, que estavam dentro deles. A burrice que justificava o baixo nível, enfim, não estava em quem via televisão, e sim em quem a fazia.

Mas a internet começou a mudar tudo. Sugeriu a possibilidade de outras opções. Tornou possível ao usuário buscar o que ele desejava, e não ser obrigado a seguir um cardápio estupidificante. Em menos de dez anos, criou uma sociedade mais informada que qualquer outra no passado. Abriu a possibilidade de novas gerações exigirem alguma coisa da mídia que estão consumindo, em vez de se deixarem levar, passivamente, para um processo de lobotomia.

Os jovens caíram fora da televisão, tal como a conhecemos hoje, e os filhos desses jovens vão um dia lhes agradecer por isso. A síndrome da cauda longa se confirmou e a sociedade cada vez mais busca a sua praia. A televisão, que por tanto tempo tratou seu público como um bando de otários, vê-se agora na contingência de ser ela mesma a otária dos novos tempos. Se neste instante for feita uma fotografia do que ela oferece a esse público, essa foto estará em breve estampada num museu, servindo para que as novas gerações riam um pouco e debochem da ingenuidade de seus pais.

A garotada que não é gado

Uma forma de transferir responsabilidades é agarrar-se à idéia de que a TV detém ainda o monopólio da produção audiovisual e insistir que as teles, por exemplo, cometem crime ao seguir este caminho. Esta é a segunda grande transformação que os próximos dias nos reservam. Produzir e difundir audiovisual não é mais privilégio de ninguém. Imaginar que seja equivale a dizer-se capaz de impedir a tempestade.

A tempestade da web TV, aliás, é a terceira das grandes transformações que o brasileiro estará experimentando em sua nova relação com a produção audiovisual. A TV que vinha pelo ar, pelo cabo ou por satélite já está em cada computador. Não é, a rigor, a mesma TV. São mais de 3 mil canais, que muito em breve serão 30 mil, que cada usuário pode acessar agora mesmo. Quem tem banda larga de 1 MB vendida no Brasil vai achar que a qualidade não é perfeita. Mas na Europa, no Japão e nos EUA a oferta desses serviços está hoje em mais de 20 MB. A imagem que vem pela rede em nada difere da que vem por qualquer dos caminhos que morrem no receptor de TV.

A TV por protocolo internet, aliás, não vem apenas pela web. Vem também pela linha telefônica, através dos serviços de IPTV, que vão tirar proveito da grande capilaridade montada pelos provedores de telefonia fixa. Caberá a eles, é claro, decidir se irão repicar o que a TV tem sugerido a seu público – ou se olharão para a garotada mais esperta, mais informada, que decidiu não ser gado e ir atrás da sua turma.

Entre os instrumentos que poderão encorajar mecanismos mais modernos do usuário se relacionar com o produto audiovisual que consome, vão entrar agora as modificações na estrutura da TV por assinatura no país. Tal coisa é devida à sociedade desde que a TV por assinatura se instalou no país, há 16 anos. A votação do PL 29/2007 ficou para 2008, ano em que terão início também as discussões para uma nova lei de comunicação de massa. O relator Jorge Bittar (PT-RJ) apresentará em fevereiro o substitutivo final a esse PL, que poderá sofrer mais de 100 emendas. É inevitável, porém, que tanto as programadoras quanto as operadoras tenham que assumir compromissos com a produção audiovisual brasileira, coisa da qual sempre estiveram livres.

O projeto prevê cotas para a produção nacional (50% em canais brasileiros, 10% em canais estrangeiros), o que pode ser aprimorado fazendo-se o que há muito deveria ter sido feito: estendendo-se cotas para o volume total de programação ofertado pela operadora.

Procurando quem fale sua língua

A ABTA (Associação Brasileira de TV por Assinatura) reagiu, sustentando que o público vai pagar pelo que não quer ver. Contudo, isso é precisamente o que acontece agora. A TV por assinatura no Brasil teve um desempenho pífio nesse tempo todo (acaba de atingir os 5 milhões de assinantes) justamente por ter sido montada tendo as operadoras como núcleo, e não os produtores de conteúdo.

O fato é que o público, quanto mais jovem for, menos gostará que lhe digam o que ele deve ver e mais buscará seus nichos de interesse. Nesse particular, a TV aberta brasileira se comporta hoje como um perfeito débil mental. É o Tio Sukita de toda uma geração que optou pelo iPod, pelo UGC, que foi explorar a cauda longa.

Esta geração já não acha que tem que ver a mesma novela para se sentir parte da sociedade. O que ela acredita é que ver a mesma coisa que todo mundo é mico, que a sua participação na sociedade consiste em ir atrás do que lhe parece melhor, mais afinado com os seus gostos e os seus princípios.

Se alguém a trata como retardada mental, ela simplesmente vira as costas e vai procurar quem fale a sua língua. Há quatro anos, 70% dos brasileiros não tinham essa possibilidade. Hoje são 20%. Antes que 2008 acabe, serão muito menos.

Agora, a televisão brasileira tem duas alternativas. A primeira é mudar radicalmente para trazer de volta um público que se tornou muitíssimo mais qualificado. A outra é definhar na pasmaceira enquanto os outros meios ocupam o seu lugar.

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Jornalista