3/8/2005 – Entre o show e a investigação existem as câmeras de TV. Elas fazem a diferença. De um lado, a apuração das denúncias, produto do trabalho braçal, silencioso, realizado numa sala apertada, entre pilhas de papel com uma lista chata com os saques milionários nas contas bancárias, sob a discreta iluminação das fluorescentes e sem direito aos 15 minutos de fama de Andy Warhol. Do outro, o espetáculo, com direito ao glamour performático dos depoimentos bem-ensaiados, cenas banhadas pela iluminação exuberante das luzes da TV, que garantem aos atores um tempinho bem maior na memória do distinto público do que os 15 minutos preconizados por Warhol.
Enquanto as cigarras cantam para as câmeras, as formigas trabalham e produzem. Não me interpretem mal – sou amplamente favorável às cigarras. Sem elas não haveria show e a vida seria monótona como os relatórios de um sigilo bancário. Por isso, na televisão, existem atores contratados para fazer as novelas – que fornecem nossa ração diária de sonho e devaneio. Não fossem eles, estaríamos sujeitos – Deus me livre! – ao bombardeio ininterrupto de fatos & notícias & relatórios & dados & números & tudo o mais que torna a vida apenas um fardo pesado e sem delírio. O diabo é que os holofotes têm o poder de converter um fato republicano, pra ser chique e usar o jargão da moda, num evento puramente midiático, com todas as distorções que isto acarreta. A cidadania se converte em show. E com uma agravante: qualquer rábula de porta de cadeia sabe que um bom depoimento é produto do preparo do inquiridor.
Jeitão de mau
Como, nas comissões de inquérito, o carro é posto à frente dos bois – a documentação só é requisitada depois que os principais depoimentos ocorrem –, os deputados que tentam se municiar de dados para fazer uma boa inquirição não têm como fazê-lo. Dependem das formigas da redações. Podem prestar atenção: são essas formiguinhas que vêm fornecendo o combustível aos inquiridores. Foi o caso do deputado ACM Neto, que só fez a pergunta sobre o Land Rover de Sílvio Pereira ao ser informado que, minutos antes, a TV Globo noticiara alguma coisa a respeito. Daí a profusão de perguntas de deputados e senadores fora de foco ou sentido. Além da discurseira enfadonha dos que, como as mariposas do samba de Adoniran, ficam apenas girando ‘em vorta da lâmpida pra se esquentar’.
Como todo evento midiático, os depoimentos na CPMI obedecem a um certo padrão técnico, ditado pelas qualidades performáticas exigidas pela televisão. Fonoaudiólogos de renome, especialistas em oratória, tarimbados marqueteiros e advogados experientes estão sendo mobilizados e regiamente pagos para garantir um bom desempenho aos depoentes. A regra é simples: dança-se conforme a música. Se é show, vamos usar as regras do show. Barba bem feita, cabelos bem penteados e preparados para suportar horas de ‘gravação’, roupas apropriadas ao ambiente, gravatas meticulosamente escolhidas para se tornar vistosas na TV (aquela lilás de Bob Jeff foi o must, até aqui) –, tudo é cuidado em detalhes preciosos. Neste jogo, quem tem mais experiência com televisão leva vantagem.
É o caso do próprio Roberto Jefferson, que trouxe para a CPMI o histrionismo desenvolvido no antigo O Povo na TV, onde fazia o papel do advogado-justiceiro. Dois momentos de sua primorosa performance, a título de exemplo: no primeiro depoimento ao Conselho de Ética, dirigiu-se ao ainda ministro José Dirceu, que não estava na sala (com o famoso ‘sai daí, Zé’), olhando fixamente para o olho da câmera. Mirava o público, não o ministro. No dia do depoimento de José Dirceu, utilizou-se outra vez da mesma técnica. Por diversas vezes abandonava o interlocutor (o próprio Dirceu) e se dirigia à câmera, onde mirava o povo brasileiro, de onde vem retirando o reconhecimento que não consegue na própria CPMI, onde é réu confesso. Performático, Jefferson usou a seu favor a máxima de que, em televisão, forma define conteúdo. Tanto que frustrou quem esperava documentos e provas contundentes contra o ex-ministro. Ao contrário, fez as caras e bocas de sempre, usou magistralmente as pausas, exibiu aquele jeitão de mau com que fascinou um Brasil que até se esqueceu que é réu, antes de mais nada. Mas não saiu daí.
Trabalhinho pesado
Dirceu, por sua vez, chegou preparado para o duelo. Descansado como Kennedy naquele debate com Nixon, nos anos 60, em vez das caras e bocas do adversário armou-se de singela contenção. Porte de estadista, neutralizou boa parte da ofensiva. Mas Jefferson sentiu o impacto negativo da própria estratégia, que só funcionaria se Dirceu descesse ao seu nível, o nível do grito e do desaforo, o que não aconteceu. Apoiado na própria biografia, o ex-ministro foi para o confronto certo de que levaria vantagem. Não foi muito convincente, mas passou bem no teste de áudio e vídeo. E ajudou a expor um Jefferson surpreendentemente repetitivo em suas acusações, fora a menção à Portugal Telecom, que ainda está rendendo. Expressões contraídas, cenho franzido, olhar duro e impassível. Uma performance montada para funcionar diante das câmeras. E que até funcionou no início, mas terminou confirmando a máxima segundo a qual, em televisão, se uma fórmula funciona, então já é obsoleta.
Enquanto isso, no silêncio da sala ao lado e na agitação das redações, as formigas trabalhavam. E é desses formigueiros que estão saindo os elementos de prova para inculpar os indiciados. Até por um detalhe bobo: a tradição judiciária, no planeta inteiro, ainda é baseada exclusivamente no conteúdo verbal, e não na forma visual. Fundamenta-se no verbo, não na imagem. Embora o planeta viva imerso na chamada ‘civilização da imagem’ (sensacional quando flagrou Marinho guardando aquele troco), o que vai sair, ao final dos trabalhos da CPMI, será um relatório escrito, e ainda assim, despido de qualquer referência às performances dos atores. Na maçaroca de papel que o relator apresentará não vai constar, por exemplo, que fulana negou conhecer a cafetina Daisylove ‘com um olhar de ódio por ter sido apanhada em flagrante’. Ou que sicrano ‘deixou-se trair pelo suor denunciador, quando assegurou desconhecer a marca do óleo que Valério usa para lustrar a careca’.
Até mesmo as fitas da TV Câmara e da TV Senado com as gravações dos depoimentos restarão guardadas para os arquivos da história. Não comporão os autos do processo. Curiosa e melancólica constatação: para fins de prova, o canto das cigarras, afinado pelo marketing mais moderno, servirá para muito pouco, talvez para garantir os 15 minutos de fama do Warhol. Dele só restarão raras palavras, um conteúdo minguado, arrancado a suor e lágrimas dos depoentes da CPMI. Já o trabalhinho pesado, silencioso e sem glamour, executado pelas formigas, é o que pode e vai mesmo mudar os rumos do país. Alguém aí se lembra do final da fábula do La Fontaine? Pois é.
Exclusivo
Nesses tempos de tantas CPIs e CPMIs, TJ em Close dá uma ajuda aos coleguinhas e publica, com exclusividade, este ‘Quem é Quem’ na CPI dos Bingos, para facilitar a identificação dos personagens. Imprima e cole no mural da redação. (P. J. C.)
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Jornalista, professor e pesquisador em Comunicação. Esta coluna faz parte de seu projeto acadêmico na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília