O novo quadro que se desenha no audiovisual brasileiro, a partir principalmente da discussão do controvertido projeto da Ancinav, passou a gerar também um importante reagrupamento associativo dentro da atividade. A conseqüência disso deverá ser uma possibilidade de manifestação mais plural de cada área, mas também o enfraquecimento de setores que até agora falavam – ou davam a impressão de falar – em sintonia, malgrado suas grandes diferenças internas.
Aparecem mais peças e afloram mais interesses no tabuleiro político do cinema e da televisão brasileiros, justamente no momento em que se prepara a reunião do plenário do Conselho Superior de Cinema, marcado para 9 de dezembro, uma quinta-feira. Nesta reunião, o comitê civil do Conselho – que esteve por mais de três meses examinando o assunto – produzirá, junto com os nove ministros de Estado, o texto final do projeto a ser remetido ao Presidente da República, que o apreciará antes de enviá-lo ao Congresso Nacional.
No âmbito das emissoras de TV, o racha mais expressivo já vinha se configurando muito antes da apresentação do projeto do governo para o setor do audiovisual – e nada tem a ver com ele. As dissidências na Abert se estendem há anos e já produziram algumas formas de associação alternativas até chegar à recém-criada Abra, que reúne as principais concorrentes da Globo (SBT, Record, RedeTV! e Band).
A nova entidade evidencia que a grande rede de televisão brasileira é muito diferente de todas as outras, tanto no ideário quanto na ação. Não falam a mesma língua, apesar de estarem no mesmo negócio – não tendo, portanto, condições de estarem representadas, neste momento, por uma única entidade.
Oficialmente, o que separa a Globo das demais redes de televisão é a percepção, por suas concorrentes, de que a rede que detém mais de 80% do bolo publicitário utiliza métodos desleais para atingir este resultado. Na prática, existe um abismo entre a Globo e as demais emissoras na maneira de enxergar o negócio televisão, com fortes reflexos sobre a adoção de modelos de construção de conteúdo nacional.
A Globo tem insistentemente batido na tecla de que não apenas conta com um índice de nacionalização superior a 80% na sua programação, como é responsável pela mais extensa e diversificada produção audiovisual brasileira (tomando como base o fato de que produz 1.200 horas/ano de dramaturgia, vinte vezes mais do que o próprio cinema). É nisso que reside a tragédia da televisão brasileira. O que a Globo diz é a expressão da verdade. O que ela deixa de dizer são duas coisas: que um nível tão alto de conteúdo nacional de qualidade não deveria ser a exceção, mas o padrão de toda a televisão brasileira; e que todos teriam a ganhar se grande parte desta produção se diversificasse.
Há meios de sobra para que isso aconteça. Não é estatisticamente aceitável que para cada grande autor ou artista que estejam na Globo não existam 20 outros, entre 170 milhões de pessoas, que estejam simplesmente tentando demonstrar seus talentos – e suas capacidades de gerar programas competitivos, do ponto de vista comercial – para qualquer outra emissora. Mas o modelo de televisão praticado no país não apenas impede que esses trabalhos cheguem ao vídeo (estabelecendo assim uma censura velada à criação intelectual) como faz com que pelo menos cinco grandes redes comerciais, além das emissoras públicas, tenham que dividir uma faixa de 20% de todo o faturamento publicitário das TVs.
Não existe uma só razão, portanto, para que a Globo defenda a manutenção de um modelo que ela mesma não segue e que levou a televisão brasileira ao pior momento de sua história; a não ser que ela tema que o incentivo à diversificação da produção, e ao aparecimento dos talentos que estão vetados pela TV, possa resultar no fortalecimento das outras emissoras. Mas se isso for verdadeiro, então a tese da urgência dessa diversificação estará consagrada.
Última hora
É aí que entram as dissidências que estão explodindo nos outros setores. Elas não se relacionam diretamente com a construção de conteúdo para televisão, mas com os mecanismos de produção e comercialização do produto audiovisual brasileiro para todos os meios.
Na sexta-feira, 29 de outubro, por exemplo, o Sindicato da Indústria Cinematográfica e do Audiovisual (Sicav) anunciou seu desligamento do Congresso Brasileiro de Cinema (CBC). O CBC é uma espécie de federação de entidades do setor, criada logo depois do III Congresso Brasileiro de Cinema, realizado há quatro anos em Porto Alegre (os nomes são idênticos, o que pode causar alguma confusão ao leitor desavisado – mas uma coisa é o evento, outra a entidade).
Na época da realização do III Congresso, o cinema vinha de um longo período de desarticulação, tanto que o II Congresso havia ocorrido 40 anos antes. O clima de grande euforia que se criou é que fez com que uma federação pudesse ser criada naquele momento, congregando dezenas de entidades ligadas a produtores, distribuidores, exibidores, curta-metragistas etc, que tinham em comum o desejo de que a área voltasse a se organizar – mas guardassem, cada qual, seus próprios interesses e expectativas.
Deste congresso nasceu não apenas o CBC como também, de forma indireta, a própria Agência Nacional do Cinema (Ancine), criada a partir de articulação de um grupo de ativistas da área com o então ministro Pedro Parente, do Gabinete Civil, que resultou no Grupo Executivo para o Desenvolvimento da Indústria do Cinema (Gedic) – do qual saiu a agência, por meio da Medida Provisória 2228-1, de 6 de setembro de 2001.
A Ancine, que iria regular não apenas o cinema mas também a televisão e se chamaria Ancinav, na última hora acabou restrita ao cinema por força da pressão dos radiodifusores.
Motivação principal
O CBC chegou a congregar mais de 50 entidades, que nem sempre tinham interesses convergentes, mas, juntas, criavam a impressão de força e unidade do setor. O desligamento do Sindicato da Indústria Cinematográfica e do Audiovisual, em outubro, ocorreu quase simultaneamente à saída de entidades representativas dos principais distribuidores e exibidores de cinema, e poucos dias depois de uma audiência com o presidente Lula, na qual, capitaneados pelo CBC, cinco dezenas de entidades e quase três centenas de produtores foram levar o apoio à criação da Ancinav.
É importante entender a razão da necessidade dessa manifestação. Oficialmente, ela aparece logo no dia seguinte ao vazamento do texto do projeto, dois dias antes de sua apresentação ao Conselho Superior do Cinema (CSC), em agosto deste ano.
Naquele momento, a mídia em peso atacou com violência o que considerava um tom autoritário e dirigista do projeto da Ancinav, para não falar da sua grande abrangência.
Duas semanas depois, representantes dos grandes produtores, exibidores e distribuidores, ao lado de representantes da televisão, criaram um grupo (apelidado de ‘grupo dos 18’, que incluía três membros do próprio CSC) para apresentar ao governo um substitutivo (apelidado de ‘emendão’) ao projeto que estava sendo examinado pelo Conselho – este, criado exatamente com essa atribuição pela Casa Civil da Presidência da República, por solicitação do Ministério da Cultura (MinC).
O grupo dissidente argumentava que o próprio ministro Gilberto Gil havia encomendado o substitutivo, mas o MinC garantia que essa contribuição iria apenas se juntar às mais de 400 outras recebidas durante a consulta pública a que o projeto da Ancinav esteve submetido. Neste cenário confuso, evidenciaram-se as divergências que já eram marcantes há muito tempo – e que o circunstancial consenso do CBC havia se encarregado de camuflar enquanto isso foi possível.
As divergências estão presentes em toda parte. No sábado (13/11), o conselheiro Carlos Eduardo Rodrigues, que representa a Globo no CSC, falou ao Globo e à revista eletrônica Tela Viva News. Expressou publicamente muitas dessas divergências e faz críticas ao presidente do Comitê Civil do CSC, Juca Ferreira, que por sua vez garantiu ao mesmo Tela Viva News que o Conselho avançou bastante rumo ao consenso.
Quatro dias antes, durante a cerimônia de entrega da Ordem do Mérito Cultural no Palácio do Planalto, o presidente da República fez, de improviso, uma defesa apaixonada do projeto da Ancinav e deu uma estocada no que considera a razão de seus opositores. Depois de dizer que o ministro Gilberto Gil já ‘apanhou o que tinha que apanhar’ pela confecção do projeto, Lula afirmou que ‘enfrentamos uma adversidade muito grande porque estamos mexendo com hábitos, estamos mexendo com pseudodireitos, com costumes, e tudo isso é sempre muito complicado’.
Nesta terça-feira (16/11), parte do chamado ‘grupo dos 18’ está formalizando a criação de um fórum setorial constituído por empresas e entidades representativas do setor dito ‘industrial’ do audiovisual brasileiro. A capa ‘industrial’ serve ao grupo para justificar a dissidência; e criar uma oposição entre os setores ligados ao mercado e os comprometidos apenas com aspectos considerados ‘culturais’ da atividade. Trata-se de grandes produtores, distribuidores e exibidores, que ao lado do setor de televisão (mais especificamente da Rede Globo) institucionalizam assim o racha com o grupo do CBC – formando, com o Fórum, uma espécie de ‘CBC do B’.
Não há dúvida de que a motivação principal dessa nova federação é esvaziar o Congresso Brasileiro de Cinema, que em 2005 será um importantíssimo ator nas discussões que o Congresso Nacional travará sobre o projeto da Ancinav. A manobra visa impedir que o CBC possa falar em nome de toda a atividade.
Baixo clero, alto clero
O CBC tem tido uma atuação parlamentar importante, inclusive junto ao Conselho de Comunicação Social, e seu atual presidente – o cineasta Geraldo Moraes –, que já foi secretário do Audiovisual do MinC, reside em Brasília. Por outro lado, não deixa de ser razoável que uma atividade que conta com mais de 50 entidades (sem mencionar as duas federações das emissoras de televisão) se manifeste não por meio de uma apenas, mas de um conjunto de federações. Por muito menos, o presidente da Radiobrás Eugênio Bucci defendeu na versão televisiva do Observatório da Imprensa que a Fenaj seja subdividida, já que a mesma entidade não pode representar jornalistas e assessores de imprensa.
O que essas divisões estão sinalizando é que o universo do audiovisual é tão plural quanto o que está do lado de fora – e que, como em muitas atividades, os movimentos obedecem a interesses circunstanciais. Cada novo agrupamento que surge tem em sua gênese a defesa de interesses comuns, mas também e sobretudo a necessidade circunstancial de resolver situações emergenciais.
Em meio às dissenções de hoje podem ser garimpadas questões delicadas que têm sido discutidas com muita reserva – como os Funcines ou o projeto Mais Cinema. Ninguém tem dúvida, por exemplo, que a aliança que hoje une a Rede Globo a muitos dos produtores tem prazo de validade estampado na bula, assim como o tiveram as alianças que garantiram a trajetória uníssona do CBC até aqui. O próprio conceito de ‘baixo clero’ e ‘alto clero’, que tem sido usado para designar os agentes mais ricos e menos ricos deste processo (ou, como se costuma dizer, os mais capazes e menos capazes de movimentar o PIB) é de altíssima volaticidade.
Identidade cultural
Tudo isso é brincadeira de criança se comparado aos interesses que começam a ser postos na mesa ante a iminência de implantação das plataformas de transmissão e recepção digitais de televisão – e a surpreendente omissão do governo em lidar imediatamente com a questão da construção do conteúdo. Essa preocupação pode ser identificada na questão da abrangência da Ancinav, mas o decreto que cria a agência não tem o poder de estabelecer a política nacional para a TV digital, que pertence a outra esfera.
O cinema e a televisão brasileiros têm sido pródigos em eleger grandes inimigos circunstanciais para que a união na luta contra eles crie a aparência de consensos inabaláveis. Durante muito tempo os grandes exibidores foram considerados pelos produtores como inimigos número 1 do cinema brasileiro. Hoje, são aliados. Depois, os distribuidores estrangeiros, em especial as majors, foram a bola da vez. Hoje estão aliados. A Globo, que já foi nomeada a mãe de todas as inimigas, também está aliada – e é ela mesma, quem diria, que vê como inimiga principal da televisão brasileira a produção cinematográfica estrangeira.
A televisão brasileira e o seu cinema, o governo e toda a atividade audiovisual, têm de se acostumar à convivência com o contrário e a relativizar a importância do consenso. Diante das importantes decisões que serão tomadas pelo Congresso, o novo quadro que se desenha na representação do setor – para não falar da emergência de novas mídias e de novas composições políticas na esfera do governo – impõe o reconhecimento de que estamos diante de uma situação complexa, repleta de interesses momentâneos e de ambigüidades, que exigem análises profundas de seu impacto das decisões.
Os interesses econômicos são imensos, mas o que está no campo minado é a identidade cultural da nação brasileira.