Em recente matéria publicada na revista italiana L’Espresso, o Brasil foi comparado a um imenso reality show produzido pela Rede Globo de Televisão. Neste gigantesco Big Brother, fantasia e realidade se confundem para um público que se deixa envolver profundamente pelo que vê na televisão, sobretudo na novela. Segundo os dados divulgados para revista, a fábrica de sonhos mais poderosa da América Latina tem um share médio de 56% – que pode chegar a 85% quando vai ao ar o Jornal Nacional. Verdadeiro truste midiático, investe na TV a cabo, nos canais por satélites, em editoras e no cinema, emprega cerca de 27 mil trabalhadores e ganhou, em 2004, mais de 2 milhões de dólares.
Que a Globo fosse um império das comunicações, não é nenhuma novidade. É notório o poder que tem sobre os brasileiros, influenciados pelas imagens e palavras veiculadas em telas praticamente monopolizadas pela emissora. É conhecida também a supremacia da rede na produção de novelas, gênero de entretenimento que o público adora. O que é praticamente ignorado, porém, é que a fusão entre fantasia e realidade se baseia em um tipo de instrumentalização televisiva criado pela ditadura militar.
De fato, os militares, para manter alto o consenso popular, buscaram estimular uma intensa atmosfera positiva capaz de envolver a população brasileira. Por isso a importância de uma rede nacional de telecomunicações, que foi construída pelo regime e inaugurada pela Globo em 1969. E assim, durante todos os anos 1970, a televisão transformou-se em espelho ideológico do regime, sem que existisse direto envolvimento produtivo do Estado.
Esta estratégia midiática foi inicialmente coordenada pela Aerp – Assessoria Especial de Relações Públicas da Presidência da República – versão modernizada do antigo DIP, Departamento de Imprensa e Propaganda do regime de Getúlio Vargas. Mas o detalhe mais interessante é que tal assessoria foi realizada com base a um projeto de um assessor pessoal de Roberto Marinho, Walter Poyares.
Plano de integração
Não por acaso, portanto, a Globo participou ativamente do projeto militar de formação de uma televisão ‘educativa’, reforçada por uma propaganda oficial que mandava ao ar slogans como ‘Você constrói o Brasil’ ou ‘Brasil, conte comigo!’. E as novelas também fizeram parte desse esquema, a partir de uma radical nacionalização temática.
Nobres de Veneza, piratas espanhóis e escravos americanos que povoavam a telinha foram substituídos por comuns cidadãos brasileiros que, ansiosos para melhorar de vida, viviam as próprias aventuras no presente, em um Brasil em franca modernização. O marco inicial desta transformação foi Véu de Noiva. A propaganda anunciava: ‘Em Véu de Noiva acontece tudo como na vida real. A novela-verdade!’. Era um slogan de duplo sentido. Se as novelas diziam a verdade, era verdadeiro também aquele Brasil que mostravam: grande, moderno, de variados aspectos geográficos e de tantas riquezas naturais.
Para valorizar a ‘modernidade’ implantada pelo regime, costumava-se também evidenciar a falência moral da velha classe política, identificada sobretudo com a decadente oligarquia rural. E a primeira novela a propor esta temática foi a famosíssima Irmãos Coragem.
Grande sucesso de público, a novela inaugurou uma linha de melodramas rurais didáticos que perduraria por muito tempo. O título não era casual: os protagonistas eram uma alegoria aos cidadãos brasileiros que, como corajosos irmãos, deviam se unir para a reconstrução nacional. E a voz potente de Jair Rodriques convocava a população: ‘Irmãos, é preciso coragem!’.
Por meio de mocinhos valorosos e latifundiários sem escrúpulos, a novela divulgava os projetos de reforma agrária, colonização e desenvolvimento do interior, previstos pelo Plano de Integração Nacional e colocados em ação pelo Incra. E não foi mera coincidência o fato de o plano de integração ter sido inaugurado pelo general-presidente Emílio Garrastazu Médici uma semana depois de ter ido ao ar o primeiro capítulo de Irmãos Coragem, no qual mocinhos valorosos extraiam ouro e diamante do rico e inexplorado solo brasileiro.
Progresso redentor
Dada a importância atribuída à questão da integração entre a modernidade e a tradição naquele período, a programação das novelas da Globo foi rigorosamente dividida em duas categorias. Numa, comunicava-se a idéia de um Brasil tradicional através de novelas ambientadas no interior do país ou em cidades de valor histórico. Na outra, comunicava-se a idéia de um Brasil moderno através das novelas ambientadas nas grandes capitais da industrialização, Rio e São Paulo.
Se no interior do país as novelas mostravam um processo de integração da cultura tradicional aos novos tempos, nos centros urbanos vivia-se o progresso absoluto. Síntese do Brasil que se industrializava para transformar-se em potência capitalista, Rio e São Paulo se convertiam em pontos de encontro para personagens que chegavam de todos os cantos do país para conquistar um lugar ao sol.
Os protagonistas eram invariavelmente pessoas pobres que enriqueciam rapidamente, reproduzindo boa parte das aspirações da população urbana. As cidades eram o lugar onde os desejos de prosperidade pareciam finalmente realizar-se, graças ao sensacional crescimento econômico.
Em 1973, na novela Os Ossos do Barão, a música de abertura repetiu por 120 capítulos:
‘Eu não tenho nome/ Não tenho tradição/ Não tenho sobrenome/ Mas tenho dinheiro/ Dinheiro compra tudo/ Compra o mundo inteiro’.
Na época do ‘milagre’, os versos davam idéia da sensação vivida pelos brasileiros. Sintonizados diante da TV, em sintonia com o regime militar, os telespectadores usufruíam do clima de bem-estar nacional útil à imagem do governo. Quem ligava a televisão para acompanhar a novela favorita, constatava que sob o comando dos militares as velhas injustiças no campo estavam acabando e que, nas cidades, iniciava uma nova era de riqueza e prosperidade.
Esperava-se que o progresso chegasse, infalível e redentor como o último capítulo de uma novela.
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Mestre em ‘Scienze dello spettacolo e delle produzioni multimediali’ pela Universidade de Veneza, com a dissertação ‘Nella rete del duce – L’immaginario televisivo nella dittatura militare brasiliana’, defendida em 2005