Um novo conceito de jornalismo, o jornalismo de televisão pública levado à prática na TV Cultura, de São Paulo, promoveu demissões há trinta anos, em março de 1974. O protagonista do episódio foi Fernando Pacheco Jordão, que era diretor de telejornalismo da emissora. Em setembro de 1975, convidado a retornar, Jordão indicou para o cargo Vladimir Herzog, que em 25 de outubro foi assassinado sob tortura numa dependência do Exército brasileiro. Herzog fizera parte da equipe de Jordão na TV Cultura. Eles haviam trabalhado juntos na BBC de Londres. A reação da sociedade, em especial dos jornalistas, à morte de Herzog e à versão de que ele tinha se suicidado entraram para a História do Brasil como um dos momentos decisivos da resistência democrática à ditadura.
Na entrevista a seguir, Fernando Pacheco Jordão conta essa experiência pioneira, iniciada em 1972 e orientada por conceitos que sobreviveram ao regime ditatorial, à mediocridade profissional e ao oportunismo. Mostra duas coisas: primeiro, sua qualidade profissional, humana e intelectual. Não é à toa que o homem tem tanto prestígio: idéias claras, posições firmes e a dose de flexibilidade necessária para lidar com os fatos da vida. Segundo, que o esforço atual da TV Cultura para produzir jornalismo público de qualidade é o desdobramento de um caminho iniciado há mais de trinta anos. Com empenho e sacrifício, em condições extremamente adversas, de ditadura militar, que, felizmente, foram superadas.
Há uma passagem no livro Dossiê Herzog – Prisão, tortura e morte no Brasil (página 170 da 2ª edição, 1979) em que você faz a narrativa retornar até março de 1974, quando o presidente da Fundação Padre Anchieta, professor Antônio Guimarães Ferri, o demite da TV Cultura. Foi uma perseguição política. O telejornal era considerado subversivo. Mas seu relato mostra que ele foi, de fato, uma experiência pioneira de jornalismo público no Brasil.
Fernando Pacheco Jordão: Sem querer ser pretensioso, eu coloco o trabalho
que se fazia no jornalismo da TV Cultura como um trabalho de resistência política.
Era um jornalismo de resistência. Não era ligado a nenhum partido político,
não era partidário, mas era político. Nós éramos um grupo de jornalistas contra
a ditadura militar. Conscientemente, fazíamos um trabalho político, um jornalismo
engajado. Não era adjetivado, era contextualizado. Era subversivo na medida
em que era jornalismo de conteúdo altamente informativo e contextualizado, numa
época em que a informação era considerada subversiva.
Como vocês conseguiram fazer esse trabalho, galgar essa posição? O governo de São Paulo era nomeado…
FPJ: A TV Cultura foi criada no governo de Abreu Sodré (1967-71). Nós começamos
no governo de Laudo Natel (71-75). Depois veio o Paulo Egídio Martins (75-79).
Havia contradições nesses governos. O secretário da Cultura de Paulo Egídio
era José Mindlin, um democrata, alguém que pensava a TV Cultura como uma possibilidade
de tevê pública. No início da TV Cultura, eu e o Vlado éramos dois profissionais
chegados de Londres, onde tivemos uma formação dentro da BBC, que era tevê pública.
Aqui se tinha o conceito equivocado de que era tevê estatal. Nós vínhamos com
a idéia muito firme de trabalhar com o conceito de tevê pública, principalmente
na área jornalística, um jornalismo independente. Claro que era uma coisa um
pouco quixotesca, em plena ditadura militar. Mas foi o que a gente tentou fazer.
Formamos uma equipe que não era ligada a nenhum partido político de oposição-
eu não era filiado, o Vlado também não, e acho que a maioria dos jornalistas
unidos naquele grupo também não pertencia a nenhum partido. Pelo menos não era
do meu conhecimento, e eu não os escolhi por nenhuma condição partidária, e
sim pela condição profissional e pela cabeça de cada um, pelo conceito que faziam
do que devia ser o jornalismo numa televisão como a TV Cultura.
Quem tinha muita preocupação com o que faríamos era o presidente da Fundação
Padre Anchieta, José Bonifácio Nogueira. Muito preocupado, sempre, com a questão
da censura. Como ele me considerava um perigoso comunista… Porque antes de
ir para Londres trabalhar na BBC eu tinha trabalhado na TV Excelsior, que pertencia
ao Grupo Simonsen e tinha apoiado João Goulart. Por isso, nós éramos considerados
todos de esquerda. Eu tinha sido preso em 1964, por ocasião do golpe, como toda
a equipe da TV Excelsior. Ele tinha uma preocupação muito grande de que eu fizesse
um jornalismo de esquerda. Dizia: ‘Eu não quero um jornalismo opinativo. Tevê
educativa não é para dar opinião.’ Eu dizia para ele: ‘Jornalismo educativo
não é jornalismo opinativo. O bom jornalismo não tem que ser opinativo. Quem
opina é quem recebe a informação. O que um jornalismo educativo tem que fazer
é fornecer ao espectador elementos para que ele tenha condições de formar sua
própria opinião, seu próprio conceito sobre o que está acontecendo.’ E ele,
que era uma pessoa inteligente, olhava para mim e dizia: ‘Sim, mas isso pode
ser subversivo.’ E eu dizia: ‘Dr. José Bonifácio, talvez o senhor tenha razão.
A gente pode ter problemas.’ E ele tanto sabia que foi adiando durante muitos
meses a implantação do telejornalismo. Fiquei durante muito tempo na TV Cultura
sem fazer jornalismo, fazendo produção de programas, que aliás também deram
problema com a censura. Na época, tudo que não trabalhasse de acordo com a cartilha
dos militares dava problema. Fiz muitos programas de aulas e documentários que
deram problema com a censura.
Aprendizado na Inglaterra
Quanto tempo você ficou preso?
FPJ: Ah, fiquei 48 horas preso no Dops e fui fichado. Foi no início da ditadura
militar, antes do AI-5, ainda era uma coisa muito branda. Eu já tinha um contrato
de três anos com a BBC de Londres. Fiquei em Londres quatro anos. Vladimir Herzog
foi trabalhar na mesma função: produtor e locutor de programas de rádio. Depois,
enquanto estávamos lá, fizemos um curso de produção de programas de tevê. Foi
feito com uma bolsa do British Council, dada com o compromisso de virmos trabalhar
numa tevê pública quando terminássemos o curso.
Ambos voltaram em fins de 68, direto para a TV Cultura.
FPJ: Eu vim, o Vlado, não. Foi trabalhar na revista Visão como editor
de Cultura.
Quem queria fazer telejornalismo? Você e seus colegas? Não era algo que interessasse a direção da televisão, menos ainda o governo do estado.
FPJ: O governo do estado não queria muito. A casa, o José Bonifácio, queria,
mas tinha medo, se preocupava com as repercussões.
Nesse momento, depois da decretação do AI-5, a situação já tinha engrossado.
FPJ: O caldeirão já estava fervendo.
Na Inglaterra, além de aprender jornalismo público de televisão, vocês estão numa sociedade que funciona democraticamente. Isso dá uma visão diferente das coisas. Você volta e encontra uma ditadura atroz. As pessoas esquecem que a ditadura foi atroz, infundiu medo em milhões de pessoas, qualquer bobagem dava prisão, pessoas sumiam, coisas loucas aconteciam.
FPJ: Eu me lembro que, quando amigos nossos nos visitavam em Londres,
se espantavam com o fato de a gente falar em tom normal na rua, num restaurante,
ficavam preocupados, achavam que era perigoso, preferiam que a gente cochichasse,
porque alguém poderia estar ouvindo. Demoramos a entrar nessa de ter medo de
falar em tom normal. Ao voltar, vimos que havia razões para isso.
Colocar em contexto
A iniciativa de fazer esse tipo de jornalismo tem a ver com o fato de que praticamente não havia mídia de oposição [‘principalmente na televisão’, corrige Fernando Jordão]?
FPJ: Nós já fazíamos isso na TV Excelsior, eu Vlado, Nemércio Nogueira e outros.
Não dependia muito de aparato tecnológico.
FPJ: Dependia de conceito. A TV Cultura foi a primeira a introduzir no vídeo
jornalistas que não faziam comentários opinativos. Os editores de cada área
é que contextualizavam, situavam o espectador dentro daquele momento, davam
os parâmetros. Por exemplo, eu me lembro que estava muito na moda a Bolsa, cotações.
O Jornal Nacional sempre dava cotação do ouro, do dólar, das Bolsas,
todo dia. E eu falava: as pessoas devem ficar perplexas, sem saber o que isso
significa em suas vidas. E eu punha no ar o Marco Antônio Rocha, que era nosso
editor de Economia, situando aquilo na vida das pessoas, mesmo para quem não
possuía ações e não comprava ouro, não lidava com dólar. Amanhã, quando você
sair de casa, o que isso significa para você. Por que eu estou dando essa notícia
para você. Como é que você vai lidar com isso.
Que outras editorias você tinha?
FPJ: Internacional, eu tinha até um editor de Ciência e Tecnologia…
… Coisa rara, na época
FPJ: …tinha um editor de Meio Ambiente…
… Mais raro ainda. Quem eram esses editores?
FPJ: Ciência e Tecnologia, Anthony de Christo. Internacional, Gabriel Romeiro.
Era uma experiência única no Brasil. Quando começou?
FPJ: A gente começou com um jornal semanal em 1972, chamado Foco na Notícia.
A gente elegia três ou quatro assuntos e fazia uma revista semanal de 40 minutos,
que ia ao ar às nove da noite, nove e quinze.
Existia nessa época alguma medição de Ibope? Vocês tinham algum feed-back a respeito de como repercutia na sociedade?
FPJ: Não, esse semanal, não. Só comentários.
Guerra do Vietnã
Você mostra em determinado momento em seu livro sobre o assassinato de Vladimir Herzog que um homem, Cláudio Marques [ver Personagens, adiante], talvez não fosse o único, mas esse com certeza fazia acusações ferocíssimas contra o Vladimir e o resto da equipe, dizendo que estavam envenenando, eram comunistas. Ou seja, de alguma maneira, no momento que você relata, isso incomodava. Quando começa a incomodar e por quê? Seria um pouco sem explicação pegar um jornalista, vários jornalistas, prender e torturar.
FPJ: Acho que incomoda menos pelo volume de audiência e mais pelo fato de ser
um jornalismo insólito, numa emissora considerada emissora oficial, e talvez
feito por jornalistas ocupando cargos que eles gostariam de estar ocupando.
Teve uma motivação rasa, aí.
FPJ: Deve ter tido.
Você se lembra de alguma edição de que você gostou muito, ficou feliz, a coisa ficou redonda, a equipe ficou satisfeita, ou algum tratamento que vocês davam a algum tema?
FPJ: Bastava dizer, como fazíamos, ‘presidente constitucional do Chile’, referindo-nos
ao Allende. Não era preciso mais nada. Eu me lembro do tratamento ao longo da
cobertura da Guerra do Vietnã. Demos um tratamento muito digno a isso o tempo
todo. O Consulado americano se queixava muito. Uma vez ganhei uma viagem aos
Estados Unidos, uma daquelas viagens que o Departamento de Estado patrocina
para se conhecer a imprensa americana. Você escolhe o seu roteiro. Ficou claro
no Consulado americano por que estavam me convidando. Por causa das cobertura
nossas na TV Cultura. Isso eu contei para um professor americano de Harvard,
ele ficou indignado e disse que eu deveria escrever para o meu representante
no Congresso, não devia admitir uma coisa dessas…
Isso tudo sob muita pressão. Enquanto era semanal, não. Quando passou a ser diário, com o nome Hora da Notícia, em 1973, sim. E passou a haver uma expectativa do Palácio do Governo de que a gente desse uma cobertura maior ao palácio. Engraçado é que não havia pedidos, porque eu deixei claro para a Secretaria de Comunicação que seria ineficiente a TV Cultura virar um órgão de divulgação do palácio. Não seria bom perante a opinião pública, perderia credibilidade. Eu combinei com eles que quando o assunto merecesse cobertura, eu ia fazer reportagem.
Aliás, tinha imagens que eu chamava de ‘escovão’. Quando eu estava fazendo o espelho, a pauta do dia, às vezes eu dizia para o pessoal: ‘Está muito pesado o jornal, hoje a gente está precisando de um ‘escovão’ para limpar a barra’. Também precisava sempre entrar um Laudo Natel, que era para, se precisasse de uma cobertura no palácio, a gente ter.
Isso, para quem era caçador de comunistas, era pior ainda, era como se houvesse uma chancela oficial para tudo o que você estava fazendo. Era como se o governador estivesse em casa também assistindo ao noticiário.
FPJ: Se precisasse de uma cobertura oficial, pelo menos era um jornal
que dava cobertura a ele. A cada dois, três jornais precisava de uma boa matéria
de governo. Eu procurava fazer bem feito. Não oficialesco. Bem feito no sentido
de fazer uma boa reportagem, com o mesmo padrão de qualidade do resto do jornal.
Até crítica, às vezes. Se eu estou fazendo uma matéria dizendo que o governo
está melhorando o abastecimento de água em algum lugar, ia lá fazer a matéria
crítica, mostrando como estava naquele momento, como é que o governo estava
intervindo para melhor aquilo. Tinha as pessoas reclamando. Mas era duro convencer
esse pessoal de que aquilo era necessário. Eles não entendiam bem.
Sem adjetivos
Vocês se colocavam do ponto de vista do interesse da sociedade brasileira, não de um governo, um partido.
FPJ: Exatamente. Mas o duro era convencer o guarda da esquina.
Quem era o guarda da esquina, no caso?
FPJ: O guarda da esquina mais difícil era nossa diretora Nídia Lícia. Abaixo
do presidente da Fundação havia a Divisão de Ensino e a Divisão Cultural, dirigida
pela Nídia Lícia. O Jornalismo era subordinado à Divisão Cultural. Ela me pegava
todo dia no pé. Me chamava de manhã, o pessoal da redação já sabia que era trolha.
Também pegavam no pé dela. Porque era o palácio… Ela me dizia: ‘Fernando,
por que você me cria tanto problema? A gente assiste televisão de noite, o Brasil
é cor-de-rosa. Assiste a TV Cultura, o país é negro. E além disso o Consulado
americano não pára de ligar para cá.’ Minha principal defesa sempre foi dizer:
‘Nídia, pegue o nosso jornal, não tem um adjetivo. São matérias objetivas. Só
tem informação.’ E de fato não tinha. Eu brigava com o pessoal, dizia: ‘Olha,
o primeiro fdp que me puser um adjetivo na matéria está na rua.’
E a turma topava?
FPJ: Topava. Tudo mundo entrava na linha. O pessoal compreendia.
E aprendia.
FPJ: É. Aprender a fazer as coisas direito. Não é fazendo panfleto, não é no
berro que você convence. É no argumento.
Que dose de sensacionalismo havia nesse telejornal, de apelação, esquentar a matéria?
FPJ: Não tinha sensacionalismo.
E o que tornava o jornal atraente para o espectador? É um debate muito atual. Supõe-se que o espectador só vá ligar a televisão se houver um helicóptero em cima de um cadáver, ou algo parecido, e talvez essa seja a maior mentira do mundo. Talvez isso faça as pessoas pararem de ligar a televisão depois de algum tempo.
FPJ: Olha, a gente lidava com todos os temas que estavam em todos os telejornais.
Outro engano do Bonifácio. Ele insistia muito em dizer: ‘Eu quero que a nossa
tevê dê notícias que os outros não deram.’ E eu dizia: ‘Não, vamos dar as notícias
que os outros deram, só que com outro enfoque. Se os outros não deram é porque
não aconteceu, ou porque não interessa.’
Você foi obrigado a demitir alguém?
FPJ: Não. Mas quando me cortaram a cabeça cortaram a de todo mundo.
Minha demissão foi uma coisa tosca. O então presidente da Fundação, professor
Antônio Guimarães Ferri, me parou no meio do pátio para conversar, começou a
falar de equipamento, a gente estava esperando uns equipamentos, umas câmeras,
aí de repente ele falou assim: ‘Aliás, o senhor não trabalha mais aqui.’ Eu
falei: ‘Como?’. Ele: ‘O senhor não trabalha mais aqui. Eu tenho recebido muita
pressão do Segundo Exército para demitir o senhor. E o senhor está demitido.
Mas se o senhor repetir isso aí fora eu desminto.’ Você sabe, evidentemente
não se podia atribuir essas demissões ao Exército, a pressão de ninguém. Ele
me demitiu em março e acho que três meses depois demitiu a equipe inteira, o
Gabriel Romeiro, o Georges Bourdoukan, que era o chefe de reportagem, todo mundo.
Desmantelou a equipe inteira.
Jornalismo de TV melhorou
Essas vagas foram preenchidas por que tipo de gente?
FPJ: Gente mais maleável.
Que continuou fazendo um jornalismo parecido com o que vocês faziam ou totalmente diferente?
FPJ: Totalmente diferente. Engraçado que eles mantiveram, como a TV Cultura
manteve até hoje, o mesmo formato de matérias mais longas. O que acabou acontecendo
é que a TV Cultura até hoje tem um estilo de jornalismo com matérias longas,
tijolaços. Durante muito tempo perderam aquele caráter de jornalismo de mais
informação, de mais contextualização, e ficava parecendo que o bom jornalismo
é aquele que estica a matéria. Mas recentemente constatei que a contextualização
voltou a ser uma preocupação. No caso da falência do grupo Cirio, por exemplo,
só a TV Cultura situou no noticiário a relação de Sergio Cragnotti com o Brasil.
[O italiano Cragnotti foi multado pela Comissão de Valores Mobiliários em
2002, quando era controlador da Bombril, e proibido de dirigir uma S/A no Brasil
por cinco anos.]
O que levou Vladimir Herzog a ser contratado de novo, em 1975?
FPJ: Já era governo do Paulo Egídio, Mindlin era secretário de Cultura, mudou
a direção da TV Cultura. Eu fui convidado a voltar para lá e não aceitei. Eu
trabalhava na TV Globo desde 1974, era uma época muito rica no Globo Repórter,
onde eu estava. Me perguntaram o que eu achava do Vladimir Herzog e eu achei
ótimo.
Hoje, e mesmo naqueles tempos, em outros lugares, essa crônica seria muito ligada a posições nas empresas, a cargos, coisas que fazem parte também da vida profissional. Mas você está falando de coisas diferentes, de princípios, conceitos. É outro mundo. Seu livro sobre o assassinato de Herzog é muito bom, mas essa passagem, na leitura tardia que fiz, me chamou a atenção, tendo em vista o tipo de preocupação do OI. Por que você foi demitido? Era agente de que partido, estava infiltrado lá? Não é. É um conceito, que se choca não só com o reacionarismo, a ditadura, mas com uma visão muito rasa de jornalismo de televisão.
FPJ: O jornalismo de televisão melhorou muito de uns anos para cá. Ficou muito
mais denso, conseqüente, responsável.
Isso não inclui os programas policialescos.
FPJ: Não, esses são inqualificáveis.
Você não vê um nexo, uma articulação, e eles puxando os outros para trás, para fazer besteira, por causa da suposta audiência? Não levam os outros a fazer também um tipo de sensacionalismo?
FPJ: Os jornais nos horários tradicionais de informação não fazem isso. O que
eles têm é uma carga de informação não contextualizada que desnorteia o espectador…
… Talvez seja um pouco inevitável. Como é que você vai ter tempo e gente para colocar tudo em contexto?
FPJ: …o espectador que assiste ao jornal do Boris e em seguida ao Jornal
Nacional deve sair com a cabeça cheia de uma carga de violência. Não sei
se ele distingue bem: Febem, morros do Rio, Guerra do Iraque.
Você tem acompanhado o aumento do prestígio da BBC no Brasil, no rádio, na Internet?
FPJ: Tenho acompanhado mais pela CBN. A qualidade da cobertura da BBC melhorou
muito. Ela está oferecendo um serviço bem melhor do que no meu tempo, quando
ele era muito mais burocrático. Hoje é mais ágil, tem uma cobertura muito melhor.
A que você atribui isso?
FPJ: Iniciativa da própria BBC, que está mais pró-ativa. Por sinal,
o jornalismo aqui no Brasil desativou muitas fontes de informação próprias.
O Brasil quase não tem mais correspondentes no exterior. Não tem nem aqui. Aqui
só funcionam as agências.
Emoções de palanque
O paulistano Fernando Pacheco Jordão começou no rádio em 1957. Foi repórter e copydesk d’O Estado de S. Paulo. O golpe de 1964 o encontrou como redator, secretário e apresentador do Show de Notícias, telejornal diário da TV Excelsior. Preso e liberado em dois dias, Jordão foi para Londres, contratado pela BBC como produtor do Serviço Brasileiro até 1968. Fez mais um ano de estágio em jornalismo e televisão educativa.
De volta ao Brasil, foi para a TV Cultura, onde produziu uma série de 90 programas em diferentes áreas de Ciências Humanas, 13 concertos e uma peça, Happy End, que ganhou prêmio. Em 1972, organizou o Departamento de Telejornalismo da Cultura e lançou um jornal semanal, Foco na Notícia, que no ano seguinte se tornou diário, com o nome Hora da Notícia. Demitido em 1974, foi contratado pela TV Globo, onde se tornou editor-chefe do Globo Repórter em São Paulo.
Relembra com ironia crítica a razão de sua saída da Globo, na ‘fantástica greve’ dos jornalistas de São Paulo em 1979, ‘maravilhosa, juvenil’:
FPJ: Eu fui um dos líderes, de fazer discurso no palanque… e ser demitido
no dia seguinte. Duas mil pessoas no auditório do Tuca, na Rua Monte Alegre.
Quem resiste aos holofotes? Uns três ou quatro jornalistas da Veja
haviam dito que estavam solidários com os companheiros mas que, como diretores,
que exerciam cargos de confiança, não podiam entrar em greve. Tomei a palavra.
‘Eu ocupo cargo de confiança. Sou diretor da Divisão de Reportagens Especiais
da TV Globo em São Paulo, diretor do Globo Repórter em São Paulo. Eu
vim aqui para dizer que a minha profissão é jornalista. Diretor não é profissão.
E que, como jornalista, eu entro em greve’. É claro que aí eu fui ovacionado.
Era um momento de glória. Fátima Jordão (socióloga, mulher de Fernando), na
platéia, sabiamente, fazia assim com a cabeça, como quem diz; ‘Não é possível…’
Não deu outra. No primeiro dia de trabalho na Globo entra o diretor de RH na
minha sala com a carta de demissão. Eu estava demitido. Eu e mais sei lá quantos.
Uns 300 em São Paulo. Foi uma razia. Até hoje eu guardo a emoção daquele momento.
Não sei se faria de novo…
Jordão ficou num ‘dilema chiquérrimo’, com duas ofertas de trabalho. ‘A Dorrit
[Harazim] me oferecia ser correspondente da Veja em Paris e o Mino [Carta]
me oferecia ser correspondente da IstoÉ em Londres.’ Acabou indo para
Londres, onde ficou até 1982. A TV Cultura o chamou de novo, como diretor de
Programação, função que exerceu até 1984, quando foi para a Veja. Desde
1990 faz apenas consultoria em comunicação. Participou como assessor de imprensa
das duas campanhas vitoriosas de Mário Covas para o governo paulista, em 1994
e 1998.
Rir da estupidez
Dos tempos que precederam a estréia do jornal semanal, Fernando Pacheco Jordão guarda boas histórias sobre como conseguia driblar a censura da ditadura e a auto-censura da emissora ao dirigir programas de aulas. Os textos eram feitos por um time forte. ‘Paul Singer, Gabriel Cohn, Ruth Cardoso’, lembra Jordão. ‘A Ruth Cardoso uma vez me disse: ‘Não tenho idéia de como você vai conseguir transformar isso num programa de televisão’. Mas a gente conseguiu’.
Alguns anos atrás Jordão andou pesquisando no Arquivo do Estado sua ficha no
Dops e descobriu que boa parte do tempo dos agentes era gasta em elucubrações
estúpidas. ‘Tentaram descobrir um código que estaria sendo usado nos programas
para transmitir instruções subversivas. Ou havia coisas como ‘consta que’, mas
se tratavam de assuntos públicos, impressos em letra de forma. E eu lia aquilo
e me indignava: ‘Como, consta quê?’ A veia irônica, como acontece nas melhores
famílias, não poupa o próprio narrador.
Sem clareza, mas divertido
FPJ: Quem escrevia os textos de psicologia era um behaviorista da USP,
Rodolfo Azzi. Um dia eu o encontrei após a exibição de um programa e ele disse:
‘Estou rindo até agora. E eu: ‘O conceito não ficou muito claro…’ Ele: ‘Mas
ficou muito divertido…’ Por uma aula de Psicologia acabei recebendo cumprimento
do Marighela. Um amigo comum me disse: ‘O Carlos mandou te cumprimentar.’ Eu:
‘Que Carlos?’ Ele: ‘É o Marighela. Por aquela aula. Disse que foi muito corajosa.’
Houve uma coincidência. O Abreu Sodré tinha acabado de sair com um decreto estimulando
as pessoas a denunciarem vizinhos, qualquer coisa suspeita que acontecesse na
vizinhança. A aula terminava com um professor pressionando um menino a acusar
quem tinha feito uma bobagem qualquer numa classe, e o programa fechava com
a câmera em cima do menino, muito constrangido, com um som em off da
classe inteira: ‘Se acusar, apanha! Se acusar, apanha!’ Marighela achou que
o programa tinha sido muito corajoso. Foi absolutamente acidental, porque tinha
sido gravado um mês antes da publicação do decreto. E não era eu que controlava
a programação, o dia em que iria ao ar…
Charuto feudal
FPJ: Tinha um diretor da TV Cultura que revia os textos todos. Minha
conversa com ele era sempre uma coisa muito cínica de minha parte. Ele pegava
o texto e falava para mim: ‘Escuta, isto aqui está um pouco forte. Não gostei.
Essa palavra você não devia usar.’ Havia programas, por exemplo, sobre feudalismo,
em que eu não usava ‘senhor feudal’, nem ‘servo da gleba’. Usava ‘patrão e empregado’.
Ele ficava puto da vida. Eu dizia: ‘Mas Dr. Sarmento, sabe por que é que eu
uso? Para a pessoa poder entender. É um conceito muito novo para ela, em 15
minutos de aula é difícil entender isso. São palavras que ela não conhece’.
E ele dizia: ‘Mas aí ganha uma atualidade indesejável. Isso não é bom.’ E o
programa ia para o ar. Quem faria era o Antônio Pedro, aquele ator. Quando ia
dizer as falas do senhor feudal ele acendia um charuto. E esse diretor ficava
puto da vida. Ele falava: ‘Aquele ator que você contratou piora as coisas. Na
hora ele acende um charuto’. Eu dizia: ‘Está bem. Vou falar para ele não fazer
mais isso’, como se não o controlasse. Era uma conversa cínica, muito engraçada.
Personagens
O Grupo Simonsen controlava dezenas de empresas no país, entre elas a Panair, uma das maiores companhias aéreas brasileiras. Montou a TV Excelsior em 1960. Depois do golpe, a emissora ficou na oposição ao novo regime. Saiu do ar em 1970.
José Bonifácio Coutinho Nogueira (1923-2002) foi presidente da UNE em 1945, secretário de Agricultura em São Paulo na década de 50 e candidato ao governo do estado em 1962. Foi fundador da TV Cultura, em 1969, e secretário de Educação e de Cultura no governo de Paulo Egídio Martins. Criou depois a EPTV, afiliada da TV Globo em Campinas, Ribeirão Preto, Franca e outras cidades paulistas.
Nídia Lícia atriz e diretora, italiana, com quem Sérgio Cardoso fundou o Teatro dos Doze, em 1949, e se casou. Foi apresentadora da TV Cultura e diretora da Divisão de Cultura.
Carlos Sarmento foi diretor de planejamento sob a presidência de José Bonifácio Nogueira na Fundação Padre Anchieta.
Antônio Guimarães Ferri foi presidente da Fundação Padre Anchieta, professor e vice-reitor da USP.
O jornalista Cláudio Marques era responsável no falecido Shopping News, em 1975, pela Coluna Um, em que escreveu, por exemplo: ‘TV Educativa continua uma nau sem rumo. Repercutindo – pessimamente – o documentário exigido pelo Canal 2, fazendo a apologia do Vietcong [referência a um filme da agência inglesa Visnews]. Eu acho que o pessoal do PC da TV-Cultura pensa que isto aqui virou o fio…’ (7/09). ‘A infiltração (a essa altura não é infiltração, é domínio total, ou quase…) da esquerda contestatória no sistema e na democracia em vários escalões, só não vê quem é conivente ou burro. O caso da TV Viet-Cultura extrapolou. E muito. (…) Eu não exijo atestado ideológico de jornalista, nem quero fazer o jogo de fascistas. Mas é cretino se admitir o domínio total do PC nos jornais, revistas e TVs’. (28/09)
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