A Rede TV! ficou 25 horas fora do ar porque desrespeitou o telespectador. A punição procede. É claro que se a moda pega vai faltar emissora para tanta freqüência livre. É doloroso para quem observa a televisão com um mínimo de respeito pelo que o veiculo poderia oferecer de qualidade de entretenimento e de informação, de inteligência e de contribuição para a formação da população brasileira – mas também e principalmente de competitividade e de desempenho comercial –, é doloroso, dizia-se, que a essa altura ainda estejamos discutindo a ética das pegadinhas. E, no entanto, seria paradisíaco se o problema das pegadinhas se restringisse ao que ele parece ser. Como num filme de Wes Craven, porém, o mal só aparece quando fica fora de controle.
O episódio das pegadinhas do programa Tardes Quentes, de João Kleber e da interrupção imposta à RedeTV! pode não trazer qualquer contribuição especial ao que se vem discutindo há tempos sobre o nível médio da televisão aberta brasileira, e a maneira como vêm sendo utilizadas as concessões públicas de radiodifusão. Pode também não acrescentar muita coisa ao que já se sabe sobre a falta de talento e de compreensão do business com que é gerida, em sua maior parte, essa programação. Mas é emblemático de algo bem maior. O que acontece com as tardes promovidas por João Kleber é mais parecido do que se pensa com o que ocorre todos os dias na mídia brasileira.
Há dois patamares em que a questão das pegadinhas pode ser considerada. O primeiro é o da honestidade de sua encenação. O segundo é o da invasão da privacidade e o da exposição de preconceitos.
Sabemos que o que se pretende por autêntico nesse tipo de pegadinha é, na verdade, falso. Tudo ali é encenado. Em geral por atores sem muito talento e a partir de mecanismos que denunciam por si só a fraude (colocação das câmeras, áudio, edição etc.). Qualquer cidadão com mais de dois neurônios sabe que o que está vendo não é uma brincadeira (ainda que de mau gosto) com transeuntes desavisados, mas uma encenação quase amadora. Ainda assim, age como se tudo aquilo fosse verdade – seja porque quer acreditar no que sabe que é falso, seja porque tem realmente menos de dois neurônios.
Asneira em profusão
Uma coisa completamente diferente é a exposição de preconceitos contra negros, nordestinos, mulheres, homossexuais e por aí afora. Esse é um crime previsto em lei, não importa em que contexto o quadro esteja sendo exibido.
Se um segurança de shopping é punido por manifestar preconceito racial, não há razão para que com uma empresa de mídia os critérios sejam outros. Da mesma forma a invasão da privacidade e a utilização indevida da imagem. Não fosse tudo obra de ficção, os produtores das ‘pegadinhas’ trabalhariam 10 anos para pagar as indenizações que qualquer juiz do mundo acataria a cada 5 minutos.
A televisão e o povo brasileiro não mereciam que a essa altura do campeonato – e com tantos problemas sérios a serem enfrentado no país – essas bobagens ainda estivessem no epicentro de um debate.
Mas não é apenas nas pegadinhas do João Kleber que o que se pretende por autêntico é na verdade, falso. E não é apenas na Rede TV! que essa falsidade toda é encenada por péssimos atores. A mesma coisa tem acontecido com dolorosa freqüência nas redações de muitos grandes jornais e revistas do país – que como João Kleber (e, diga-se, com muito maior convicção do que ele) sugerem ao público que estão falando a verdade, não estão sendo preconceituosos e muito menos utilizando indevidamente a imagem de pessoas sérias e manipulando seus pensamentos para sustentar suas próprias opiniões ou defender seus próprios interesses.
As execráveis ‘pegadinhas’ já não são tumores, mas tornaram-se parte do organismo num ambiente jornalístico dominado em grande medida pela inconsistência, arrogância e leviandade. Pela certeza de que o papel em branco aceita qualquer coisa e ali se pode escrever o que quiser, porque tem-se a prerrogativa de ser dono desse espaço.
A quantidade de asneiras, por exemplo (e para ficar apenas no âmbito da mídia), que a imprensa foi capaz de publicar semana passada sobre a Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação, em Tunis, é estarrecedora. E o mais grave é que todas essas condições somadas geram o perigoso resíduo da chantagem – às vezes completamente explícita, outras ligeiramente disfarçada – que acompanha (sem a menor sensação de culpa, como se fosse completamente natural) essa sensação de aproveitamento irresponsável do poder.
Realidade arquitetada
A existência das pegadinhas nas tardes da Rede TV! é uma coisa triste. Já a generalização das pegadinhas pela imprensa que se vende como séria é algo dramático.
João Kleber faz o seu papel, não se apresenta como o que ele não é. Nas redações, no entanto, o mesmíssimo papel do apresentador/humorista é exercido por autores de pegadinhas travestidos de jornalistas. Aquele tem alguns minutos num slot de programação de TV que não se apresenta como sério, usando como matéria-prima um ambiente escancaradamente encenado. Esses têm a primeira página de jornais e revistas que se apresentam ao leitor como tudo menos levianos – e toda a vida nacional como matéria-prima.
Não fazem piadas de tão explícito preconceito contra minorias raciais ou opções sexuais – e mesmo que o fizessem a punição de ficar fora do ar ou das bancas é a última coisa que a sociedade desejaria para eles, visto que a questão certamente não passa pela demanda por controle externo.
Mas o fato é que o ambiente que permite e encoraja a disseminação dessas pegadinhas não é nem um pouco distinto do ambiente que estimula a construção de uma realidade que só existe na dimensão em que ela está sendo arquitetada.
A diferença está no grau de hipocrisia de cada um.