O deputado Jorge Bittar (PT-RJ) tem uma granada nas mãos. Deve lançá-la na Comissão de Ciência e Tecnologia no próximo dia 2 de abril. Ela pode demolir o arcaico modelo de TV por assinatura que vem sendo praticado desde 1992 no Brasil. Mas, se hesitar demais, o modelo continuará sendo o mesmo – e o deputado ainda poderá ficar sem alguns dedos.
O projeto de lei (PL) 29/2007, do qual Bittar é relator, trata do mercado de produção, programação, empacotamento e distribuição de conteúdo pelas TVs por assinatura. Nos últimos cinco meses, vários substitutivos foram agregados ao projeto. Os mais revolucionários dizem respeito a um sistema de cotas para a produção brasileira de caráter independente.
Não há nada de surpreendente aí, exceto a possibilidade de se corrigir uma distorção grosseira que existe neste mercado desde que ele se implantou no país. É uma herança que vem da televisão aberta – um setor que reage historicamente à regulamentação como se tal coisa implicasse em interferência ou censura – e por isso não desfruta apenas da liberdade que deveria ter, mas de uma impunidade negada a quase todos os outros ramos de atividade.
Diversificar o conteúdo
Ainda assim, a Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA), que congrega operadores e programadores, reagiu prontamente à proposta contida no Projeto de Lei. Mandou elaborar um estudo que concluía que dentro de quatro anos serão necessários mais de 3 bilhões de reais só para financiar a produção nacional. Tal estudo, elaborado pela empresa de consultoria Pezco, deixava de considerar parâmetros importantes, como os atuais mecanismos de fomento à produção audiovisual e o próprio retorno financeiro dessas produções, para chegar à conclusão que o cliente desejava – ou seja, que tal espaço para a produção brasileira independente nas redes internacionais de TV por assinatura é inexeqüível. A ABTA fez o que tinha que fazer, no interesse de seus afiliados. Mas deve-se considerar a hipótese de que esses interesses não sejam necessariamente os mesmos dos usuários dos serviços.
As redes internacionais e os operadores estão no seu legítimo direito. Agem assim porque ganharam espaço para fazê-lo. De quem ganharam esse espaço? Do Estado brasileiro. De governos que pretendem representar a sociedade, mas que fogem aos preceitos constitucionais que entendem a televisão como um bem público, porque ninguém quer botar a mão neste vespeiro. A rigor, cotas para a produção nacional em programação de televisão distribuída no país não deveriam causar estranheza alguma. Estranho seria a inexistência de produção brasileira no Brasil.
Duas pitadas de história não fazem mal a ninguém. A primeira diz respeito à própria organização das redes internacionais de TV por assinatura. Elas nasceram com a explosão dos novos sistemas de distribuição de sinais nos EUA, no início dos anos 1980. Traziam para o assinante o benefício de diversificar a oferta de conteúdo. Em cinco anos, mais de 350 redes de TV por assinatura foram criadas nos EUA. Nenhuma no Brasil. Para se internacionalizarem, bastava levantar o sinal para os satélites e ter agentes de venda bem convincentes. Foi o que se fez. Aos poucos, essas redes passaram a controlar a distribuição internacional de conteúdo para TV. Conseguiram ter, em escala global, um impacto semelhante ao que a constituição das redes nacionais de televisão (nos anos 1960) teve para as culturas regionais.
Legislações diferentes
Hoje, menos de 300 redes internacionais controlam o que é visto pelo espectador de todos os pontos do planeta, de São Paulo ao Sri Lanka. Essas redes não apenas estabeleceram uma visão parcial e limitada da informação televisiva, como exportaram seus próprios modelos de conteúdo. Vieram para ampliar os horizontes do espectador; aos poucos, acabaram engessando-o.
A outra historieta diz respeito à maneira pela qual o setor foi regulado no Brasil. Isso aconteceu nos idos de 1995. A chamada ‘lei do cabo’ transformou-se num magnífico exemplo de como a legislação pode ser leviana e cega se feita sem um estudo consistente da matéria. A lei 8977, de 6 de janeiro de 95, levava em consideração o conteúdo distribuído por cabo, mas fechava os olhos ao que já era distribuído por MMDS e ao que viria, logo depois, a ser distribuído em DTH (satélite banda Ku).
A razão para isso era o que hoje se chamaria de bizarra: os legisladores – e muito menos os que os assessoravam – não tinham a mínima idéia do que queria dizer MMDS (multipoint microwave distribution service, sistema multicanal de distribuição de microondas) ou DTH (direct to home, ou direto para casa). A legislação para o setor ficou capenga, falando sobre partes de um caminho e deixando outros abertos. Procuravam legislar sobre produção nacional sem levar em consideração os pacotes oferecidos pelas operadoras, que é onde efetivamente estava a venda de programação. Construíram um posto de pedágio e uma estrada vicinal ao lado. Espantaram-se do posto não ter dado certo.
O resultado é que, hoje, se três vizinhos no mesmo prédio estiverem assistindo o Discovery Channel e um for assinante da Net, outro da TVA e o terceiro da Sky, eles estarão regidos por legislações completamente diferentes. Parece espantoso, mas é apenas o começo.
Subserviência abjeta
A televisão por assinatura implantou-se no Brasil tendo os operadores como núcleo. Sempre foi encarada, portanto, como um serviço. Não como uma oportunidade para o desenvolvimento de novas formas de criação e comercialização de conteúdo audiovisual, que foi justamente o que possibilitou aos programadores norte-americanos montarem centenas de redes em poucos anos. O Brasil se transformou num mercado subsidiário das grandes redes internacionais de TV por assinatura. Tornou-se um consumidor maior do que já era de conteúdo estrangeiro – e demorou muito para se imaginar tirando proveito das oportunidades de produção e difusão do conteúdo gerado pelos novos modelos de distribuição de sinais. Quando o fez, resignou-se a fazê-lo de forma humilhante e perversa.
Produtores brasileiros tornaram-se pequenos fornecedores de programação para redes internacionais de TV por assinatura – desde que se enquadrassem nos modelos existentes, no ideário consagrado, nos meios de produção definidos de fora. Restou para o produtor brasileiro a migalha da mão-de-obra, desde que passasse longe da criação.
A pequena produção brasileira para TV por assinatura vive até hoje da esmola e da arrogância de redes internacionais que vendem os seus serviços para o consumidor brasileiro. Isso, apesar do mercado ser brasileiro e do dinheiro também ser brasileiro. Um eficiente mecanismo legal, o artigo 39 da MP 2228/01, dá aos programadores uma redução de 11% para 3% no Condecine (contribuição para o desenvolvimento da indústria de cinema) devido, desde que o valor seja aplicado em produções brasileiras. O instrumento tem gerado cerca de 40 milhões de reais por ano para a produção. Ainda assim, durante muito tempo algumas programadoras escalavam estagiárias para discutir a aplicação do incentivo e não se davam ao trabalho de exibir o produto. Não se pode imaginar subserviência mais abjeta.
‘Canal BR’
Foi a inexorável entrada das teles neste mercado que forçou uma nova tentativa de regulamentação. O projeto de lei que foi parar nas mãos do deputado Bittar limita a 30% o capital de empresas estrangeiras na produção e produção, mas mantém a liberdade para a operação. Operadores podem ter 100% de capital estrangeiro. As teles, portanto, ficam aptas a entrar no negócio de distribuição de conteúdo do jeito que quiserem. O que o PL 29/2007 faz é aproveitar a chance de uma regulamentação inevitável para estabelecer cotas para a veiculação, nas redes de TV por assinatura, de conteúdo brasileiro, em especial de produção independente. Está longe de ser agressivo, ou mesmo original nisso. Tal exigência existe na maior parte da Europa. Nos lineups das operadoras dos EUA contam-se nos dedos as redes de televisão levantadas do exterior.
Ainda assim o PL 29/2007 acabou cumprindo algumas das piores tradições comerciais brasileiras: inventou dificuldades para vender facilidades. Destrinchá-lo pode ser uma tarefa árdua porque o projeto se encarregou de tornar-se confuso. Alguns dos conceitos que criou justificam um pequeno glossário. É preciso saber o seu significado para entender o projeto.
Um deles é o de ‘programação qualificada’. Para quem nunca tinha ouvido falar disso, ‘programação qualificada’ é, em resumo, tudo o que não sejam programas jornalísticos, políticos, religiosos ou de vendas, incluindo aí publicidade e televendas.
Outro conceito é o de ‘empacotador’, que antes se confundia com o de ‘operador’. Agora, o ‘operador’ é quem distribui tecnicamente os sinais e manda a fatura para o assinante. Já ‘empacotador’ é quem monta os pacotes que são oferecidos ao usuário. É claro que a mesma empresa pode assumir múltiplas funções.
Há também o novo conceito do ‘Canal BR’. Apesar da exposição da marca, isso não significa que BR sejam os canais patrocinados pela Petrobras. Canal BR é o que veicula 40% de programação nacional. Metade da qual elaborada por produtores independentes.
Mercado não oferece opções
Na quarta-feira (19/3), o deputado Bittar anunciou a fusão de duas entre as três principais formas de cotas que havia imaginado (através dos substitutivos recebidos) para o conteúdo nacional. A primeira resultante obriga as redes internacionais a veicular, no horário nobre, 10% de conteúdo brasileiro. Mas não especifica se este conteúdo deve ser oriundo da produção independente, o que provocou a justa indignação dos produtores brasileiros, aos quais antes tal cota era assegurada.
A segunda determina que 25% da grade (isto é, dos pacotes oferecidos pelos empacotadores) deve ser preenchida com os ‘Canais BR’. O percentual sugerido antes era de 30%. O importante é que a lei joga finalmente a carga para o empacotamento. Se algo semelhante tivesse sido feito em janeiro de 2005, o Brasil provavelmente seria hoje um importante exportador de conteúdo audiovisual.
O PL 29/2007 cria cotas para programadoras brasileiras – que, no entanto, não estão obrigadas a distribuir conteúdo nacional – e determina que somente programadoras nacionais possam distribuir Canais BR. Não cria meios de assegurar o desenvolvimento de novas programadoras nacionais, mas faz com que algumas já existentes (como a Globosat) estejam aprioristicamente cumprindo a lei. Ainda está confuso, cheio dos remendos que decorrem de um grande número de substitutivos. Mas se a sua essência passar – ou seja, o estabelecimento de um número maior de players na operação e o encorajamento à produção e distribuição de conteúdo brasileiro independente –, isso não vai onerar as empresas que já participam do mercado. Até porque, para encorajar a criação de conteúdo, o projeto cria o Fundo de Fomento do Audiovisual: 10% do Fistel serão convertidos para o novo fundo, que será somado ao Fundo Setorial do Audiovisual e administrado pela Ancine.
As modificações propostas, na sua essência, cumprem o importante papel de refrescar e modernizar as empresas que participam do mercado de TV por assinatura no país. Podem tornar mais horizontal a relação que hoje existe entre a produção audiovisual brasileira e as empresas que exploram os serviços de programação e distribuição de conteúdo em TV por assinatura. Tendem, sobretudo, a colaborar para o aumento da base de assinantes, que hoje é irrisória simplesmente porque o mercado não lhes oferece opções. No Brasil, assina-se um serviço de TV paga para ter TV aberta com melhor qualidade de imagem. Não há crime algum em se tentar vender um produto diversificado, feito por mais brasileiros, para ser visto e julgado por mais brasileiros.
******
Jornalista