Foram 16 anos no ar e diversos sucessos no campo da teledramaturgia e do jornalismo. Agora, serão somadas mais 400 páginas de história. Os méritos e sucessos da Rede Manchete de televisão são o tema central do livro Rede Manchete: Aconteceu, virou história (Imprensa Oficial de São Paulo, 2008; R$ 30), do radialista Elmo Francfort.
Parafraseando o slogan ‘Aconteceu, virou Manchete’, a obra relata através de um panorama analítico a trajetória da emissora idealizada pelo empresário Adolpho Bloch e que dividiu com o SBT as concessões oriundas da antiga Rede Tupi, extinta em 1980. Foram quatro anos de intensas pesquisas em São Paulo e no Rio de Janeiro, além de vários encontros com ex-funcionários da rede. Tudo motivado pela paixão do autor pelo extinto canal. A falta de informações e a imprecisão daquelas que existem – tanto em registros históricos, quanto na internet – também colaboraram para que o livro se tornasse uma realização concreta.
Ao longo de seis capítulos, o livro oferece uma redação leve, direta e marcada pela valorização do fator humano. As pessoas que fizeram a Rede Manchete têm participação marcante na obra, página a página. Dezenas de depoimentos são intercalados com o texto do autor, juntamente com fotos marcantes da história da rede.
A obra começa com o prefácio de Ricardo Xavier, hoje roteirista do Vídeo Show, da Rede Globo, e autor do livro Almanaque da TV. Em seguida, Francfort coloca para o leitor detalhes minuciosos da cronologia da emissora, do fundador Adolpho Bloch e de todos os programas exibidos pela Rede Manchete. Além, é claro, de impagáveis curiosidades que só quem trabalhou na Manchete poderia contar.
Espírito de equipe
Espalhados pelo livro estão artigos escritos por figuras de calibre da extinta rede. Jayme Monjardim fala sobre a satisfação profissional que ali obteve. Maurício Shermann elogia a qualificação das equipes com quem trabalhou. E Fernando Barbosa Lima traça um perfil de Adolpho Bloch, de quem era amigo. Mas no livro da rede que virou história também existem interessantes revelações. Como o planejamento realizado pela direção da emissora para transmitir com exclusividade o Carnaval do Rio de Janeiro, em 1984 – quando bateu a Rede Globo em audiência – e os bastidores da morte do comentarista esportivo João Saldanha durante a Copa do Mundo da Itália, em 1990. Saldanha havia sido proibido pela direção de ir à Itália em função de seu estado de saúde.
Do começo ao fim, o livro revela a aura de ambiente familiar que caracterizava o dia-a-dia da Rede Manchete. ‘Foi um dos melhores momentos da minha carreira. Era uma emissora onde você convivia com os donos diariamente. A porta deles estava sempre aberta’, conta o diretor de novelas Nilton Travesso, que lá passou cinco anos.
Difícil encontrar algum ex-funcionário que não se orgulhe do trabalho desempenhado na emissora. Com 51 anos de carreira, o jornalista João Bussab lembra dos três meses em que trabalhou na redação paulista. Foi a equipe dele a primeira a noticiar, no recém-estreado Jornal da Manchete, um desabamento nas proximidades da Avenida Henrique Schaumann, zona oeste de São Paulo, em 1983. ‘Nunca mais teve outro igual. Todos assistiam ao jornal do SBT e da Globo e esperavam o Jornal da Manchete para confirmar. Era um show’, relata. David Gringberg, que atuava no setor de teledramaturgia, conta que a cordialidade dos relacionamentos internos foi marcante: ‘A Manchete era uma família. Sinto muitas saudades. Foi um dos melhores lugares que já trabalhei na minha vida’.
Na área técnica, ficaram as memórias de um ambiente de muita exigência, mas que oferecia boas condições de trabalho. E o espírito de equipe motivava a superação dos funcionários, que muitas vezes não recebiam seus salários em dia. ‘A coisa mais importante é que, apesar dos atrasos, todo mundo gostava de trabalhar lá’, sintetiza Fábio Rolfo, diretor de imagem dos programas Clube da Criança e Milk Shake. Para o cinegrafista e editor Arthur Ankerkrone, a Rede Manchete comprovou uma fórmula desmentida por muitos: ‘Você pode fazer uma televisão de qualidade com audiência. Foi minha grande escola’.
Crise definitiva
Exatamente às 19h de um domingo, 5 de junho de 1983, a nova rede se lançava ao ar, com um discurso de Adolpho Bloch. Em seguida, entraram o musical Mundo Mágico e o filme Contatos Imediatos de Terceiro Grau, de Steven Spielberg. No começo, eram cinco emissoras próprias (Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Fortaleza) e a TV Pampa de Porto Alegre, como afiliada. Os primeiros investimentos da rede foram em jornalismo, filmes e musicais. Tudo chancelado pelo bordão ‘Televisão de Primeira Classe’.
Após ter sido taxada de elitista e não conseguir passar de 5% de participação nos índices de audiência, a popularização foi implantada na Rede Manchete a partir de 1985, com o lançamento de novelas e minisséries. Títulos como Dona Beja, Helena, Corpo Santo e Kananga do Japão foram bem recebidos pelo público. Xuxa Meneghel foi alçada ao estrelato como apresentadora no programa Clube da Criança (e sucedida por outra estrela em ascensão, Angélica). Mas o auge absoluto da rede dos Bloch ainda estava por vir. Em 1990, a Manchete conseguiu conquistar o primeiro lugar em audiência com a novela Pantanal, estrelada por Cristiana Oliveira e Paulo Gorgulho.
No ano seguinte, chegou ao segundo lugar com A História de Ana Raio e Zé Trovão – novela que lançou a atriz Ingra Liberato. Em junho de 1992, após ter driblado situações de crise, a Rede Manchete foi vendida para o grupo IBF. Em abril de 1993, Adolpho Bloch consegue reaver a emissora na justiça, depois que o IBF mostrou-se incapaz de sanar as dívidas trabalhistas das emissoras. Naquele ano, incidente inédito na TV brasileira: funcionários da matriz carioca da Manchete em greve tiraram a emissora do ar e inseriram um slide eletrônico denunciando a falta de salários – ação semelhantes voltaria a acontecer em 1998, em São Paulo.
Cinco anos mais tarde, a rede entrava definitivamente em crise e passou a exibir uma programação quase que inteiramente baseadas em reprises. Em 1999, dois golpes derradeiros. Em janeiro, a emissora é arrendada para a Igreja Renascer. A parceria durou pouco. Em maio, com uma dívida de 308 milhões de reais, a Rede Manchete teve suas concessões vendidas para o grupo Ômega, e então foi lançada a RedeTV!. ‘A Manchete faz muita falta, faz demais. Foi uma grande empresa, que nos deu uma abertura profissional muito grande. Fizemos trabalhos muito bonitos’, diz Nilton Travesso.
Executivos ressabiados
Integrante de uma família de profissionais de televisão, o autor Elmo Francfort cresceu na sede paulistana da Manchete, situada no bairro do Limão, onde freqüentemente acompanhava um irmão e um tio que trabalhavam na emissora. ‘Ouvia deles várias histórias e acabei também conhecendo a emissora, seus profissionais. Era um clima muito bom’, lembra o radialista.
No processo de coleta de informações, foram dezenas de entrevistas. Elmo conta que em apenas um dia de trabalho no Rio de Janeiro, chegou a entrevistar 12 ex-funcionários da Rede Manchete que hoje trabalham na Globosat. Em São Paulo, os ex-‘mancheteiros’ estão hoje espalhados pelas emissoras da cidade. ‘Foi uma verdadeira maratona, de contato em contato, emissora por emissora. Não enfrentei grandes dificuldades. Alguns, no início, ficaram meio ressabiados, pois queriam saber a real intenção do trabalho. Mas logo colaboraram, e muito’, explica Elmo.
Mais ressabiados ficaram os ex-diretores da rede – historicamente criticados por ineficiência na gestão ao longo dos anos, além de um terem desenvolvido um relacionamento tortuoso com os funcionários. Ao serem procurados pelo autor para participarem, os executivos demonstraram receio. Somente após delicadas negociações, concordaram em falar: ‘Alguns ficaram bastante assustados com relação aos meus objetivos. Eu deixei claro que era [um trabalho] jornalístico, que queria mostrar os dois lados. Dei a liberdade para atacarem sim, mas também para se defenderem’. O resultado foi um livro equilibrado entre a emoção e a síntese histórica, conforme explica o autor na entrevista a seguir.
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Qual foi o tom empregado na concepção do livro? Há quem diga que livros históricos sobre emissoras de televisão são excessivamente saudosistas e pouco objetivos.
Elmo Francfort – Quis ser imparcial ao extremo. E tive surpresas no meio do caminho. O César Castanho, por exemplo, que era diretor da IBF, defendeu a administração de que fazia parte, mas ao mesmo tempo falou que havia respeito por parte da IBF a Adolpho Bloch. Eu sou a favor de livros que não sejam só saudosistas, porque temos que criar o registro histórico. Não quis também um livro criteriosamente analítico, sem emoção alguma. Tentei encontrar o meio tom. Um tom que tivesse o espírito da Manchete.
A TV Manchete obteve respeito sobretudo através da dramaturgia e do jornalismo. Como você avalia o legado deixado pela emissora?
E.F. – A Manchete fez escola. Muita gente boa passou por lá, outras começaram ali. No jornalismo, por exemplo, um grande time se formou: Mariana Godoy, Mylena Ciribelli, Ana Paula Padrão (que era da TV Brasília), Lorena Calábria e outros. Muitos despontaram na Manchete, como Alexandre Garcia, Luiz Carlos Azenha, Milton Neves, Luiz Gonzaga Mineiro, Carlos Amorim, Nelson Hoineff. Na teledramaturgia também aconteceu o mesmo: surgiram nomes como Giovanna Antonelli, Cristiana Oliveira, Paulo Gorgulho, Marcos Palmeira, Taís Araújo, Dalton Vigh, Murilo Rosa, Carla Regina, Jayme Monjardim.
A Manchete desenvolveu uma receita própria para chegar ao sucesso ou apoiou-se em mão-de-obra da TV Globo? O fato de ela ter sido sediada no Rio colaborou para o êxito?
E.F. – As duas coisas. A Manchete, no início, tinha como objetivo formar um novo time de profissionais. Existia até um curso de telejornalismo oferecido pela emissora. A Manchete fez o que a Record hoje faz. Ela tentou ao máximo colocar artistas e profissionais da Globo, bem reconhecidos pelo público, porque assim os telespectadores reconheceriam a Manchete como uma segunda opção de qualidade na TV. Era uma questão de estratégia.
Muitas novelas, programas e arquivos ainda estão deteriorando nas antigas instalações da rede no Rio. Existe alguma esperança de restauração e reexibição destas obras?
E.F. – Anterior a 1994, só o que for recuperado pelo caminho, como as fitas que foram para a TV Cultura e que hoje são vistas em matérias do Grandes Momentos do Esporte. O resto, infelizmente, nós só veremos no dia que uma instituição cultural negociar com os titulares dos direitos das fitas. É uma lástima acontecer com a Manchete o que aconteceu com o arquivo da Tupi, onde maioria se perdeu com o tempo e com os fungos.
As crises pelas quais a emissora passou foram resultado de uma má gestão de Adolpho Bloch, a exemplo do que acontece hoje com o SBT?
E.F. – Foram diversos fatores. Não podemos dizer que seja exclusivamente culpa de Adolpho Bloch. Ao mesmo tempo em que alguns fatores o culpam, outros o defendem e o elegem como principal defensor dos funcionários da Manchete. São muitos detalhes. Fiz questão de deixar para o leitor julgar. Meu objetivo foi mostrar os dois lados.
E como avalia a RedeTV! como sucessora?
E.F. – É uma outra empresa, uma outra filosofia. Se tivessem perfis próximos, poderia avaliar e comparar. No início a RedeTV! era parecida e infelizmente pecou por não olhar para trás. Ela começou com um perfil classe A, o mesmo que no início a Manchete tinha – o perfil que fez com que a Manchete se acidentasse, não tendo tanto faturamento no início. Eles demoraram uma década praticamente para se acharem. Talvez a RedeTV! caminhe para isso, para encontrar seu nicho. A Manchete tinha uma grife, ela era querida do público. A RedeTV! tem um público, mas ainda não é vista como uma possível favorita. Atualmente a RedeTV! a única emissora com programação 100% HDTV. Eu torço para que ela com isso dê o primeiro passo no reconhecimento do público. Uma vez tendo uma emissora reconhecida é o ponto de partida para desenvolver seu perfil e conseguir seu lugar ao Sol.
Há quem diga que a marca TV Manchete pode ser reutilizada. Hoje, ela pertence à TV Pampa de Porto Alegre.
E.F. – Toda marca tem uma história e carrega em si um nome, uma tradição, fatores e estereótipos. Só que não é fácil. Mais difícil do que voltar a TV Tupi é voltar com o nome Manchete. Principalmente porque ainda está muito viva, presente na memória dos profissionais que hoje têm o poder de decisão, que movimentam o mercado. Voltar com a Manchete sem ter uma qualidade – em todos os sentidos, desde conteúdo à qualidade gráfica – é dar um tiro no pé. Ela ainda é uma grife. Para voltar com a Manchete é necessário ser Manchete filosoficamente. O Marcos Dvoskin, atual dono da revista Manchete, disse em entrevista para o livro sobre o cuidado que tem com a volta periódica da revista. Ele acha que tem mercado, mas que é necessário oferecer um produto de qualidade sempre, sem decair. Mas para oferecer é necessário dinheiro por dois lados: aplicação e faturamento. Precisa aplicar de início, investir, buscando um faturamento futuro. Precisa de um prejuízo que será pago com um lucro. Para os gaúchos, a marca TV Manchete na Pampa pode até ter uma boa aceitação, já que ela foi por muito tempo afiliada da Rede Manchete. Aliás, a primeira afiliada, em 1983. Só que acredito que os Gadret [controladores da Rede Pampa] têm consciência disso, pela experiência que têm com a Rede Pampa há décadas. Fica a pergunta de onde eles pretendem chegar, se ser a TV Pampa com outro nome ou criar uma nova rede fora do eixo Rio-São Paulo.
Vídeos da Rede Manchete na internet
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Abertura e encerramento das transmissões**
Abertura do Jornal da Manchete, com Marcia Peltier**
Abertura da novela Pantanal**
Slide de funcionários em greve em SP******
Jornalista