Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Até aqui, pouca definição

Repetir um lance de uma partida de futebol na televisão por diferentes ângulos, ver filmes com qualidade de DVD, acessar a internet pelo próprio aparelho, comunicar-se em tempo real com a emissora e receber respostas imediatas, ter mais canais para assistir e até jogar games. Essas são algumas das possibilidades oferecidas pela TV digital que podem – ou não – ser desfrutadas pela população brasileira nos próximos anos. O processo de implantação da televisão digital no Brasil caminha lentamente e até agora não se sabe que recursos estarão disponíveis e em quanto tempo. Há vários caminhos, mas falta escolher o rumo.

A TV digital representa um negócio gigantesco. A televisão aberta brasileira movimentou em 2002, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), US$ 1,764 bilhão e está presente em 87,9% das casas. Para comprovar o interesse do brasileiro pelas imagens televisivas, basta ver os números. Em média, cada habitante do país gasta quatro horas e 59 minutos por dia assistindo à televisão.

A transição do atual sinal analógico para o digital vai exigir mudança de aparelhos ou compra de conversores para aproveitar as unidades já existentes. A digitalização também permitirá o acesso a mais conteúdo dentro da mesma banda (ou faixa de transmissão), pois ela será ocupada por dados que podem ser comprimidos. No mesmo espaço em que atualmente se transmite um canal, será possível veicular até quatro. O número se refere à atual tecnologia de compressão de dados de vídeo no formato MPEG, o mesmo utilizado em grande parte dos vídeos que circulam na internet. Nada impede que a compressão aumente no decorrer dos anos.

Logo, dentro desse mesmo espaço de transmissão em que atualmente um canal veicula apenas um programa, será possível veicular pelo menos quatro com a qualidade atual (standard). Daí a possibilidade de assistir a um jogo de futebol a partir de mais de um ângulo, por exemplo, ou um filme em qualidade de cinema, que ocupa mais banda do que permitiria a televisão analógica. A tecnologia também abre novos caminhos para a transmissão, com a utilização de receptores móveis, como celular e televisões portáteis, todos com imagem de alta qualidade. Empresas de telefonia já estão atentas para isso.

Ou seja, a definição de como funcionará a TV digital vai afetar tanto a indústria de eletroeletrônicos quanto a de produção de conteúdo. Mas para que isso tudo seja possível, será necessário alterar também a legislação brasileira de comunicação, elaborada em 1962 e modificada em 1967 e 1997. Para cuidar desse processo, o governo criou os grupos Gestor e Consultivo do Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD), mas a participação da sociedade civil é considerada pequena.

No 23º Congresso da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), realizado de 18 a 21 de maio, em Brasília (DF), o secretário-executivo do Ministério das Comunicações, Paulo Lustosa, garantiu que o padrão de televisão digital a ser adotado pelo Brasil será escolhido em fevereiro de 2006. Atualmente, diversos grupos de pesquisa, que envolvem universidades e empresas, estão estudando, com financiamento do governo, usos e modelos para testar a viabilidade de um padrão nacional.

O total de recursos a eles destinados até agora é de R$ 39,2 milhões, oriundos do Ministério das Comunicações e da Ciência e Tecnologia. Grande parte desse dinheiro vem do Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações (Funttel). A coordenação das pesquisas é do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento (CPqD). O prazo para a entrega dos resultados finais é 10 de dezembro, data-limite para o planejamento de um padrão nacional, de acordo com Lustosa. Foi a primeira vez que se falou em desistir da idéia de uma televisão digital brasileira.

Modelos

Além do modelo nacional, as pesquisas estão analisando os três modelos existentes (europeu, norte-americano e japonês) e suas capacidades de adaptação às condições brasileiras. A escolha vai determinar o que se pode esperar da TV digital brasileira. Atualmente, o novo formato de televisão já está sendo implementado em alguns países da Europa, nos Estados Unidos, no Japão e na Austrália.

O Velho Continente desenvolveu para a TV o padrão Digital Vídeo Broadcasting (DVB, sigla em inglês para Transmissão de Vídeo Digital). O DVB-T (o T se refere a terrestre, pois o formato também é utilizado em outros meios, como celulares) tem entre suas principais características a múltipla programação e a possibilidade de oferecer serviços. Sua adoção já está bastante avançada em alguns países.

O primeiro a fazer testes foi a Inglaterra, em 1996. Lá, o desligamento das transmissões analógicas está previsto para acontecer entre 2007 e 2012. Atualmente, 57% dos lares ingleses já captam sinais digitais, de acordo com o Consumer Panel da Ofcom, órgão regulador da indústria de comunicação do Reino Unido.

Na Alemanha, que iniciou os testes em 2002, a partir de 2010 só haverá sinal digital. A capital, Berlim, desde 2003 tem televisão 100% digital. Na Espanha e na Suécia, a previsão é de que a partir de 2008 não haja mais sinais analógicos. A Comissão Européia propôs 2012 como data-limite para que todos os países da União passem a transmitir somente sinais digitais. O DVB-T também foi adotado pela Austrália.

Nos Estados Unidos, ainda não há uma data para o desligamento do sinal hoje preponderante. As primeiras transmissões do sistema do Comitê de Sistemas de Televisão Avançada (Advanced Television Systems Committee – ATSC) aconteceram em 1996. Seu principal atrativo é a alta definição de imagem. O padrão também é utilizado por Canadá, México e Coréia do Sul.

Os japoneses, por sua vez, utilizam o Integrated Services Digital Broadcasting (ISBD – Transmissão Digital de Serviços Integrados). O nome já demonstra sua vantagem: a integração de serviços. O padrão japonês foi pensado para transmitir sinais de vídeo não só para aparelhos de TV tradicionais, mas também para celulares e demais equipamentos móveis. As experiências japonesas na área da TV digital são as mais antigas do mundo. Começaram nos anos 60, com pesquisas da rede NHK, a maior daquele país. As primeiras transmissões aconteceram em dezembro de 2003 e por lá também não há previsão de quando os sinais analógicos serão desligados. Já há um milhão de casas, entre 44 milhões, com televisão digital.

EUA e Japão estão concentrando esforços na alta definição, o que limita a multiprogramação, opção escolhida pela Europa. Vale lembrar, porém, que nenhum dos sistemas é definitivo. Todos estão se adaptando às demandas do público e buscando agregar novas opções.

Brasil

Enquanto outros países já prevêem quando terão transmissões exclusivamente digitais, o Brasil ainda nem decidiu em que formato iniciará as suas. Por enquanto, o serviço só está disponível na televisão por assinatura. A decisão esbarra na lentidão – natural – das pesquisas e em aspectos econômicos e políticos.

A Abert e a Sociedade de Engenharia de Telecomunicações (SET) defendem a adoção imediata de algum padrão internacional, desde que ele utilize imagem em alta definição e permita a mobilidade. ‘É preocupante o atraso do Brasil em relação aos outros países que já introduziram ou estão prestes a lançar a TV digital, como é o caso do México, que já se decidiu por um padrão. Isso implica a perda de oportunidade da indústria nacional em mercados potencialmente importadores de produtos e de patentes brasileiros, tanto na área de eletroeletrônica como na área de aplicações em software’, diz texto disponível no site da SET.

A escolha, porém, não é simples. O governo decidiu apostar em um padrão nacional e está investindo em pesquisa e desenvolvimento, mas os prazos já foram adiados. De acordo com decreto presidencial de 2003, o Comitê de Desenvolvimento, instalado em março de 2004, deveria ter entregado resultados em março deste ano. Os contratos de pesquisa, no entanto, só foram assinados no começo de 2005, o que atrasou bastante os estudos. Os últimos consórcios de pesquisas selecionados, portanto, terão pouco tempo para desenvolver seus estudos.

Para o pesquisador Valdecir Becker, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e autor do livro TV digital interativa: conceitos, desafios e perspectivas para o Brasil, os recursos repassados até agora são satisfatórios, porém, se comparados com os investimentos feitos no exterior, representam muito pouco. ‘Para os padrões brasileiros, os milhões de reais são suficientes, mas são mínimos em relação ao resto do mundo’, lamenta. Segundo ele, só os Estados Unidos gastaram até hoje US$ 5 bilhões.

É verdade que o Brasil não partirá da estaca zero, tendo exemplos a serem seguidos. ‘Lá fora tudo foi feito na base da tentativa e erro. Aqui podemos partir de algo pronto e adaptar para nossas necessidades’, afirma Becker. Contudo, lembra, o tempo é curto.

O coordenador-executivo do Instituto de Estudos e Projetos em Comunicação e Cultura (Indecs), Gustavo Gindre, acredita que um atraso no prazo estabelecido pelo governo não seria muito prejudicial. ‘Haveria um ganho em qualidade’, defende.

A intenção do governo, de acordo com minuta de exposição de motivos do Ministério das Comunicações em 2003, aponta três fatores necessários para a televisão digital brasileira: interatividade, baixo custo e boa recepção, flexibilidade para que as operadoras possam escolher modelos de negócios adequados e favorecer a adoção do mesmo padrão por outros países latino-americanos.

Os problemas começam pelo baixo custo. A transição para a TV digital vai demandar grandes investimentos tanto de consumidores quanto de emissoras. Um aparelho de televisão digital custa pelo menos 300 dólares, aproximadamente R$ 700. Com a popularização, a tendência é o preço baixar, mas ainda assim é ‘salgado’. Há uma solução mais barata: a compra de conversores de sinal, os chamados ‘set-up boxes’. Eles são conectados aos atuais aparelhos, que passam a transmitir os sinais digitais, porém sem alta definição. A Abert defende que apenas unidades que consigam emitir imagens de alta definição sejam comercializados, mesmo que o preço seja mais alto.

Entre os grupos de pesquisa financiados pelo governo, um está encarregado de desenvolver um modelo nacional. O valor máximo estimado para que a nova televisão esteja ao alcance da população gira em torno de US$ 100, algo em torno de R$ 250. A Universidade de São Paulo (USP) está desenvolvendo um modelo que custaria cerca de R$ 70, mas não poderia ser conectado ao telefone para acessar a internet via conexão DSL (de banda larga, mais veloz).

Do lado de quem produz conteúdo, os investimentos a serem feitos são muito grandes e difíceis de calcular. Algumas emissoras já vêm fazendo a transição há anos, porém ainda precisarão gastar muito. ‘Há aquelas que são digitais até a entrada de seus transmissores e outras que estão no início do processo de digitalização. Mas o desafio da transição para a TV digital é grande, pois mesmo as que já estão adiantadas precisão ainda investir e implantar novos transmissores, antenas e, em muitos casos, até novas torres. Enfim, estabelecer toda uma nova rede de distribuição’, afirma Liliana Nakonechnyj, vice-presidente da SET e diretora de telecomunicações da Rede Globo.

Ela acredita que esse não será o maior desafio, mas sim a adequação das equipes de engenharia ao novo formato. ‘Elas precisarão estar preparadas para apoiar a empresa, para que seja feito o melhor aproveitamento das novas potencialidades da TV digital, de modo que as emissoras de televisão possam continuar competitivas’, diz.

Interatividade

Entre essas potencialidades está a interatividade, talvez a principal delas. ‘Mas esse ainda é um assunto obscuro’, diz Valdecir Becker. Até agora não se sabe como ela será aproveitada. Uma forma, bastante limitada, é permitir ao telespectador escolher entre conteúdos pré-determinados. Qual filme entre dois irá passar em um horário, por exemplo. Outra é tornar a interatividade intermitente, possibilitando às pessoas se comunicarem com a emissora durante um determinado programa. Outra permitiria essa troca durante toda a transmissão, mas ela ainda não existe, pois o canal de retorno ainda não foi construído. ‘Essa alternativa pressupõe uma mudança radical dentro das empresas de comunicação’, analisa Gustavo Gindre, que afirma não haver um modelo pronto.

Sua análise é parecida com a de Liliana Nakonechyij em relação à adequação das equipes ao novo modelo de transmissão, mas coloca dúvidas em relação ao interesse das emissoras em ativar todo o potencial. ‘Será necessário comprar servidores de dados para administrar a demanda de milhares de pessoas e contratar dezenas de programadores, além de manter a atual estrutura. E as empresas não querem nem ouvir falar em fazer grandes investimentos’.

O mercado publicitário, maior fonte de verbas da TV aberta, não está aquecido. Além disso, as emissoras temem a concorrência das empresas de telefonia, que já se preparam para entrar nesse mercado apoiadas numa brecha da legislação. O Congresso Brasileiro de Radiodifusão foi marcado por apelos de representantes das emissoras de televisão para que a entrada das telefônicas, controladas em sua maioria por empresas estrangeiras, seja vetada.

Em artigo publicado na Gazeta Mercantil no dia 18 de maio, o presidente da Abert, José Inácio Pizani, afirmou que as emissoras valorizam a cultura nacional ao produzir programas próprios, o que pode não acontecer com a entrada das telefônicas nesse mercado de convergência tecnológica. ‘Elas não têm nenhum compromisso com o desenvolvimento cultural e socioeconômico da população’, escreveu.

O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação acredita que as propostas do governo para a televisão digital subestimam a cultura ‘como elemento de potência’ e são omissas em relação à produção de conteúdo. ‘A criação de condições para que a produção brasileira de audiovisual e de outros conteúdos digitais ocupe os espaços que estão sendo criados é tão importante quanto o desenvolvimento da infra-estrutura’, afirma a entidade na publicação ’12 problemas na digitalização das comunicações no Brasil’, lançada no último Congresso Nacional dos Jornalistas, realizado em agosto de 2004.

A Rets pediu para o Ministério das Comunicações, responsável pelo desenvolvimento da televisão digital, comentar as críticas, mas não obteve resposta. O governo já declarou diversas vezes, entretanto, fazer questão de utilizar a TV digital como meio de inclusão social. Para isso, seria necessário utilizá-la como meio de acesso à internet, função que pode ser incluída nos conversores.

Legislação

O que mais se pede é a adequação da legislação nacional às mudanças tecnológicas. A lei que rege a radiodifusão nacional (4.117/62) foi criada em 1962, alterada durante o regime militar, em 1967, e novamente em 1997, para permitir a privatização das estatais de telefonia. Para as telefônicas, foi criada a Lei Geral de Telecomunicações (9.472/97), mas agora com a convergência de tecnologias, o governo anuncia, até o fim do ano, a proposta de uma Lei Geral de Comunicações, iniciativa apoiada por entidades empresariais e da sociedade civil organizada.

‘Com essas novidades, a diferenciação entre televisão, rádio e telefonia acaba’, diz Gindre. ‘Por isso é necessário elaborar uma lei que permita a convergência e regule esse novo mercado’. O pesquisador sugere a substituição da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) por uma agência encarregada de comunicações, a ‘Anacom’. Ela atuaria de forma semelhante à Ofcom, da Inglaterra.

A Abert acredita que a regulação das empresas de radiodifusão não deve sofrer grandes alterações, mantendo suas integrantes como as únicas autorizadas a veicular conteúdo televisivo. No dia 26 de abril, foi publicado decreto presidencial que cria grupo de trabalho interministerial para elaborar uma lei que regulamente os artigos 221 (que dispõe sobre a produção de rádio e TV) e 222 (que trata da propriedade das empresas jornalísticas e de radiodifusão) da Constituição.

Enquanto o grupo elabora o projeto de lei, o Plano Básico de Distribuição de Canais (PBDB) acaba de ser divulgado pela Anatel. Ele prevê um período de transição entre a TV analógica e a digital. Seriam concedidos 1.893 canais, que abrangeriam 290 municípios, num total de 110 milhões de pessoas, que representam os principais mercados. De acordo com a assessoria de comunicação da Anatel, as empresas interessadas podem apresentar projetos de transmissão para as demais cidades. Os critérios utilizados para a escolha das localidades foram a presença de geradoras ou cidades com mais de cem mil habitantes.

De qualquer forma, ainda será preciso muito tempo que a televisão digital se popularize no Brasil. A vida útil de um aparelho televisivo no Brasil varia entre 12 e 14 anos. A substituição é relativamente rápida, mas, dado o tamanho do mercado, deve levar pelo menos dez anos. Ou seja, se o prazo estabelecido pelo governo for cumprido, em 2016 todos os brasileiros estarão assistindo a imagens de cinema. O que mais poderão fazer, porém, ninguém sabe.

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Jornalista da equipe da Revista do Terceiro Setor