Friday, 29 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Belíssima mostra sociedade feiíssima

O alerta é de Silvio de Abreu e está nas páginas amarelas de Veja desta semana (edição 1961, ano 39, nº 24). Louvem-se as perguntas do entrevistador Marcelo Marthe, que foi sem mais delongas a temas muito pertinentes.


Começa com a constatação de que a novela Belíssima ‘chegou ao sucesso com personagens que são bastante ambíguos’ e pergunta ao autor da trama por que, tendo fracassado outras vezes com personagens semelhantes, desta vez deu certo. Resposta de Sílvio de Abreu: ‘Como sempre acontece na Globo, realizamos uma pesquisa com espectadoras para ver como o público estava absorvendo a trama e constatamos que uma parcela considerável delas já não valoriza tanto a retidão de caráter’. E conclui a primeira reposta assim: ‘A moral do país está em frangalhos’.


Questionado pelo entrevistador (‘será que está?’), alude a exemplos recentes: em novela anterior de sua autoria, As Filhas da mãe, ‘os personagens bons eram os mais queridos’.


Se Silvio de Abreu estiver correto em seu diagnóstico, a situação do Brasil ficou preocupante: os personagens que até então lutavam bravamente ao lado do Bem, na eterna luta contra o Mal, tornaram-se enfadonhos para o público, que agora passou a endossar as falcatruas e desonestidades, até então atos moralmente reprováveis.


Avanço dos bárbaros


Silvio de Abreu exemplifica:




‘Alberto fez uma falcatrua para desmanchar o romance do rival. Em qualquer outra novela, isso faria o público automaticamente ficar do lado do mocinho. Mas as donas-de-casa não viram nada de errado na conduta do Alberto. Pelo contrário: ponderaram que, se ele fez aquilo para conquistar um mulherão, tudo bem. O fato de o André ter dado um golpe do baú na Júlia também foi visto com naturalidade. As espectadoras achavam que, se ele precisava de dinheiro, não havia mal em ficar com ela. Colocamos então que o canalha a estava roubando e as espectadoras retrucaram: deixa disso, daqui a pouco eles vão ficar bem. O fato de André ser bonito era suficiente para ganhar o prêmio máximo numa novela, que é ficar com a mocinha. Na mesma pesquisa, colhemos indícios claros de que essa maior tolerância com os desvios de conduta tem tudo a ver com os escândalos recentes da política’.


O autor vai direto a um ponto e sua resposta alude sem meias palavras ao ambiente político que tem tomado conta do Brasil:




‘Numa parte da pesquisa, as espectadoras apontaram com qual personagem se identificavam, e a maioria simpatizava com a Júlia, é claro. Mas havia colocações do tipo: `Quero ser a Júlia porque aí eu pago mensalão para todo mundo e ninguém me passa a perna´. Olhe que absurdo: a esperteza desonesta foi vista como um valor. O simples fato de o presidente Lula dizer que não sabia de nada e não viu as mazelas trazidas à tona pelas CPIs e pela imprensa basta – as pessoas fingem que acreditam porque acham mais conveniente que fique tudo como está. Eu me vi na obrigação de fazer alusões a essa inversão de valores em Belíssima. Quando a Bia Falcão reapareceu e disse com a maior cara-de-pau que sumiu porque estava de férias numa fazenda, ficou óbvio para todo mundo que ela estava mentindo. Mas, como Bia se impõe pela autoridade, os personagens engoliram a desfaçatez’.


Mas o mais grave é a ligação que ele faz da telenovela com o nível de escolaridade do brasileiro:




‘O nível intelectual do brasileiro de maneira geral está abaixo do que era na década de 60 ou 70, porque as escolas são piores e o estudo já não é valorizado como antigamente. Houve um dia, não custa lembrar, em que cursar a universidade era um objetivo de vida. O valor não é mais fazer alguma coisa que seja dignificante. As pessoas querem é subir na vida, ganhar dinheiro, e dane-se o resto’.


Haveria mais o que transcrever, que o signatário seja perdoado de tanto transcrever, mas este é um daqueles casos em que ao comentarista só ocorre dar um aviso aos navegantes: leiam as páginas amarelas de Veja esta semana, que vale a pena! E depois indagar: o que se pode fazer?


Pois se Sílvio de Abreu estiver certo, a sociedade brasileira acaba de tomar um rumo que nos levará ao brejo e a maioria não está percebendo isso. A minoria que já percebeu sente-se impotente diante do quadro e não encontra meios de realizar o alerta.


É como se as sentinelas percebessem o avanço dos bárbaros às portas de Roma e não pudessem alertar a cidade para o perigo. Ou porque não avisam direito ou porque os destinatários do aviso não queiram saber de alerta algum.


Lições de Millôr


Ainda assim, resta uma pergunta incômoda, que não cabe ao repórter fazê-la, nem ao novelista respondê-la: como foi que chegamos a este ponto? A menos que Silvio de Abreu esteja enganado. Esta é, aliás, uma boa esperança. Não foi a primeira, nem será a última vez que um autor ousou vaticinar alguma coisa que resultou falsa.


Com efeito, a telenovela, embora revele muitas coisas e espelhe a sociedade brasileira, não deixa de ser, ao fim e ao cabo, aquilo que o roteirista achou que fosse o Brasil. E o Brasil, como adverte Tom Jobim, não é para principiantes. O caso é que Silvio de Abreu não é um principiante em quase nada.


Como ficamos? Encrencados, no mínimo. A entrevista de Silvio de Abreu vai dar o que falar a semana inteira. E o que pensar por muito tempo… Desta vez Veja acertou em cheio: no entrevistador e na entrevista.


Aos pimpolhos que, agora crescidos, estão aéticos, para dizer o mínimo, suas mães reprimiam dizendo que tal coisa não deveria ser feita porque ‘era feio enganar o amiguinho’, ‘surrar a amiguinha’. Era. Não é mais.


Ou, lembrando Millôr Fernandes: ‘Não bata em quem estiver caído, a menos que você tenha certeza de que ele não pode se levantar’.

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Escritor, doutor em Letras pela USP, diretor do Curso de Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro