Os mestres do fotojornalismo ensinam aos novatos: quando cair o sorvete, espere as lágrimas; quando ouvir o tiro, espere o sangue. Só assim o fato adquire sua real dimensão, a grandeza que o faz merecedor de registro fotográfico. O sorvete escapulindo da mão da criança diz pouco, assim como o instante exato em que o tiro atinge o alvo. A ‘moldura’ da realidade – lágrimas ou sangue – é o que situa um fato e permite a compreensão de sua profundidade. Algo parecido, e já em outro nível, com o que propõem os historiadores quando falam do ‘distanciamento histórico’, fundamental para permitir que o acontecimento seja avaliado em sua inteireza, e não na dimensão apressada do ‘bate-pronto’ que quase sempre conduz a visões desfocadas ou distorcidas.
Assim fiz com aquela foto do deputado Severino Cavalcanti com a camisa desabotoada, deixando entrever parte da barriga, publicada na primeira página de O Globo, edição do dia 22/2, assinada por Givaldo Barbosa. O cartunista Chico Caruso, ágil diante do excelente mote gentil e graciosamente oferecido pelo editor de primeira página de O Globo, converteu a foto em ícone e síntese visual de todas as críticas e diatribes até então (e daí em diante) dirigidas contra Severino. Tive ímpetos de escrever a respeito tão logo a vi publicada. Mas preferi deixar que o tema saísse da primeira página para permitir-me um certo distanciamento crítico. Surpreendi-me com a constatação de que a impressão inicial deixada pela foto não se alterou em nada, quando observo o fato agora, duas longas semanas depois de ocorrido.
Antes de ser uma atividade pautada pela objetividade jornalística, o fotojornalismo vem se consolidando, a cada dia, como editorialização visual da notícia, isto quando a própria foto não carrega, ela mesma, seu próprio conteúdo informativo, como foi o caso da foto de Severino. Desta forma, sem trocadilhos, pode-se dizer que, por trás da objetiva da câmera fotográfica não se encontra um profissional que busca a objetividade jornalística mas, sim, um profissional que subjetivamente busca um ângulo ou enfoque capaz de agregar um ‘comentário editorial’ ao objeto fotografado. Assim aconteceu com a foto de Paulo Maluf, alvo de denúncias de corrupção, tendo a seu lado uma placa de ‘saída’. Ou aquela foto de Orlando Brito mostrando a tropa armada impedindo o acesso dos jornalistas, enquanto um policial ostentava uma braçadeira com a inscrição: ‘IMPRENSA’. Ou a foto (se não me engano) de José Serra, apanhado de baixo pra cima, tendo sobre a cabeça uma lâmpada que lhe conferia um tom angelical.
Ora, se a visão do fotógrafo é (sempre) subjetiva – subjetividade que começa pelo objeto, passa pelo enfoque, chega à iluminação e termina no corte executado na fase de edição – então não há como falar em objetividade do tipo: ‘A foto mostra o que é’. A foto, isto sim, mostra o que o fotógrafo QUER mostrar. Mostrar e comentar. E opinar. E concordar. E divergir.
Análises críticas
Se publicada no miolo do jornal, a foto do deputado Severino Cavalcanti descomposto, com os botões desabotoados, talvez não merecesse a atenção de Caruso, que talvez não a tivesse convertido em charge e cartoon, que talvez não tivesse chegado ao Jornal Nacional e, conseqüentemente, talvez não chegasse ao Brasil ‘profundo’. E, portanto, talvez não tivesse se convertido em ícone. Para fins de raciocínio, esqueçamos os ‘talvez’ e fiquemos com os fatos: Fato 1) a foto foi produzida por Givaldo; Fato 2) a foto foi editada e publicada; Fato 3) a foto foi ‘comentada’ pelos pincéis de Caruso.
Sendo assim, devemos entender que fotógrafo e editores, subjetivamente, quiseram, com a foto e sua publicação na primeira página, sintetizar, imageticamente, uma crítica ao conservadorismo do deputado Severino Cavalcanti. Tudo a partir da imagem, dentro da mesma lógica hollywoodiana de que o mocinho sempre é bonito e impecável, e o bandido é sujo, barbudo e suado. E aqui chegamos ao ponto: será que o debate e a crítica, para continuarem debate e crítica, precisam necessariamente descer ao plano do deboche às características físicas e/ou pessoais do criticado? Ou será que, no momento em que O Globo decidiu publicar aquela foto na primeira página, não estaria descendo do plano do salutar combate das idéias para o plano da pura e simples afronta, galhofa e deboche?
Sua conhecida homofobia, seu conservadorismo (de que se orgulha), seu fundamentalismo religioso em questões controvertidas como aborto e pesquisas com as células-tronco embrionárias, sem falar na promessa do aumento dos salários, tudo é motivo para análises críticas em relação ao deputado Severino Cavalcanti. Mas a exploração de suas características físicas ou de desleixo eventual com a aparência não deveriam substituir o combate franco e aberto, no plano das idéias, em qualquer órgão de imprensa que se orgulhe desse nome.
Um certo sadismo
Desta forma, se o deputado Severino Cavalcanti pode ser acusado de preconceituoso, por exemplo, contra os gays, por discordar da união civil entre eles, parte da briosa imprensa tupiniquim (que reproduziu a foto por aí, a torto e a direito) incorreu no mesmo preconceito, ao abdicar do combate de alto nível para embarcar na crítica miúda que explora tão-somente um certo voyeurismo big-brother tão em voga ultimamente.
Uma vez, ao fazer uma entrevista com Rosane Collor, para a TV Globo, notei que usava saia muito curta e, pela posição em que a câmera a focalizaria, parte de sua calcinha iria aparecer. Não tive dúvidas em pedir que se recompusesse para que pudéssemos iniciar a gravação. Não o fiz por adesão a qualquer uma de suas idéias, se é que as tinha. Mas, apenas porque se tratava da primeira-dama do país, e não me competia apresentá-la de forma comprometedora perante a opinião pública. Até porque a calcinha dela não tinha nada a ver com a entrevista que faria a seguir. Se, naquele momento, fosse a Gisele Bündchen ou a Dercy Gonçalves a primeira-dama do Brasil, teria agido da mesma forma. E olha que, na época, Rosane já vivia o inferno astral que culminaria no impeachment.
Severino Cavalcanti, como qualquer homem público, merece ser julgado por suas idéias, opiniões e posições políticas, sejam elas quais forem. E não por alguns botões abertos na camisa. Porém, na forma como a foto foi editada e ‘comentada’ pelos pincéis (de tinta e de elétrons) de Caruso, o que se viu foi apenas a tentativa de bigbrothear o personagem para torná-lo vítima de chacota, explorando um certo sadismo original do público. O mesmo sentimento que faz milhões de pessoas se darem ao trabalho de bisbilhotar dia e noite a dentro a intimidade de um grupo de jovens reclusos numa casa entulhada de câmeras por todos os lados.
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Jornalista, professor e pesquisador em Comunicação; esta coluna faz parte de seu projeto acadêmico na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília. E-mail: (paulojosecunha@uol.com.br); edições anteriores e comentários dos leitores: (caid.sites.uol.com.br)