As recentes declarações do presidente da Fundação Padre Anchieta, João Sayad, sobre a necessidade de reestruturação e renovação na programação da TV Cultura, além das possíveis demissões, trouxeram à tona, novamente, a discussão a respeito da gestão das TVs Públicas no Brasil.
Diante da exposição dos percalços da emissora paulista, uma série de questionamentos emergiu em meio às especulações sobre o futuro da TV Cultura. Comparações entre a formação histórica da TV pública brasileira e os modelos criados, por exemplo, na Europa e nos EUA ganham espaço no debate e procuram levantar explicações para a crise.
Para o sociólogo e jornalista Laurindo Lalo Leal Filho, a TV Cultura ‘fica ao sabor das decisões do governo do momento’, não funcionando sob a lógica do investimento público. Em entrevista à equipe do Brasilianas.org, Lalo, como é mais conhecido, parte do caso da TV Cultura e investe numa reflexão que perpassa pelos principais problemas da gestão pública da comunicação no Brasil. ‘A TV pública tem a obrigação e a missão de apresentar e de dar bons produtos de televisão para o público, e ao fazer isso, ela cria no público um novo conceito de televisão e esse público vai exigir da emissora comercial a mesma qualidade que ele vê na TV pública’.
Abaixo, a íntegra da entrevista.
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A TV Cultura necessitava passar por um processo de reformulação nos moldes decididos recentemente pela Fundação Padre Anchieta reduzindo, por exemplo, o quadro de funcionários?
Laurindo Lalo Leal Filho – A Fundação Padre Anchieta é um patrimônio da população do estado de São Paulo, construído há várias décadas e que precisa ser preservado de qualquer maneira. A TV Cultura é, até hoje, o principal, o mais bem acabado modelo de TV pública no Brasil. E ele – este modelo – não pode, de maneira alguma, ser destruído.
Eu tenho estudado a TV Cultura desde o seu início. Ela sempre passa por fases difíceis em função das ingerências de governos estaduais sobre a administração. E nós estamos vivendo outra vez esse tipo de problema. O Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta tem muito pouca autonomia em relação aos governos do estado e acaba sofrendo esse tipo de ingerência.
E, isso se deve à questão orçamentária…
L.L.L.F. – A questão financeira deve ser vista sobre a ótica de que é obrigação do Estado investir numa televisão pública de qualidade. Porque, no Brasil, a televisão tem um poder muito forte na educação, na cultura, na informação das pessoas. A maioria da população brasileira, e mesmo no estado de São Paulo, se informa e se entretém através da televisão. Então, a TV Cultura não pode ficar sob a lógica do mercado, de que ela deve ser superavitária, sob a lógica de que os seus investimentos devem ser cortados de acordo com as orientações do governo do estado. Ela tem que ter autonomia financeira, deveria ter um orçamento garantido pela legislação do estado de São Paulo. Um orçamento que dê conta das suas necessidades.
O que não pode acontecer é se tratar um serviço público de radiodifusão como se o mesmo pudesse funcionar sob a lógica do mercado. Não. Eu tenho que funcionar sob a lógica do investimento público. Assim, como é fundamental o governo investir em saúde, em educação, ele tem que investir em televisão pública. E, nesse sentido, é importante que os recursos sejam, fundamentalmente, do estado. Claro que você pode ter outras fontes alternativas, mas elas, no caso brasileiro, devem ser complementares aos orçamentos do estado.
E quais seriam os instrumentos financeiros das TVs públicas?
L.L.L.F. – Acho que a TV pública pode até, no máximo, ser mantida com algum tipo de financiamento de apoios culturais. Nunca publicidade, porque a publicidade desvirtua o papel da TV pública. Ela joga a televisão no mesmo saco das televisões comerciais. E, aí, ela passa a disputar audiência para conseguir publicidade. Em consequência disso, tende a abaixar a qualidade da programação. No máximo, uma fonte alternativa seria a dos apoios culturais. Ou seja, uma determinada empresa patrocina um programa e o nome dela aparece como patrocinadora. Acho que esse é o limite máximo que a gente pode fazer de concessão para uma TV pública receber um auxílio externo. Mas acho que, majoritariamente, tem que ser investimento público. Mas investimento público gerido não pelo estado, gerido pela sociedade através, no caso da TV Cultura, de um Conselho Curador autônomo, independente, e não subordinado ao estado. Infelizmente a TV Cultura, nos últimos anos, o Conselho foi cada vez mais controlado pelo mesmo grupo político, e hoje ele se curva as decisões do governo estadual.
O uso comercial do acervo da Cultura não ajudaria como fontes de recursos?
L.L.L.F. – Ela já faz isso. Mas é uma renda que atinge um percentual muito pequeno. Por mais que você invista nisso, em relação ao custo numa emissora, nunca vai passar dos 5%. É importante, mas não é suficiente.
Então, como você disse, os Conselhos não mudam…
L.L.L.F. – As mudanças são feitas, mas sempre em torno do mesmo grupo político. Não é que são os mesmos, eles têm uma alternância. O problema é que esses membros são escolhidos pelo próprio Conselho. Os representantes da sociedade são escolhidos pelo próprio Conselho. E eles acabam escolhendo pessoas alinhadas sempre com o mesmo grupo político. Então, isso faz com que esse Conselho não seja, efetivamente, representativo da sociedade paulista. E ele tem um diálogo muito restrito com a sociedade. A sociedade tem dificuldade de ter acesso a esse Conselho, de se manifestar, de levar suas demandas. Na verdade, um Conselho Curador tem que ser o canal da sociedade para junto da emissora. Esse Conselho [da TV Cultura] é muito distante da sociedade.
É possível dar exemplo de uma TV pública que aproxime o Conselho da sociedade?
L.L.L.F. – Acho que a TV Brasil está indo bem nesse caminho. O Conselho da TV Brasil, da EBC, é bastante diversificado e as suas indicações, agora, são feitas através de consultas públicas. Na última renovação de três membros, havia sessenta e poucos indicados por setores representativos da sociedade, organizações da sociedade. Ele está caminhando para ser um conselho bastante representativo. E avança muito em relação ao Conselho da TV Cultura.
Qual foi a melhor gestão que a TV Cultura já teve?
L.L.L.F. – As gestões melhores são aquelas que o governo do estado se afasta e dá autonomia ao gestor. Então, em alguns momentos, por exemplo, no governo [Franco] Montoro, nos anos 80, houve um certo afastamento e os gestores puderam criar mais, tiveram liberdade pra criar mais, para poder diversificar, sem muitas interferências. Um dos momentos melhores da TV Cultura foi entre o final dos anos 80 e começo dos anos 90, quando chegou a ter 12 pontos de audiência no Ibope, com sua grade de programação infantil, que até hoje é lembrada pelos adultos que eram crianças na época. Era uma referência de qualidade. Aquilo mostrou que a TV Cultura, quando ela tem recursos, liberdade e competência. Porque é esse o trinômio, se você consegue juntar esses três fatores, a TV Cultura tem condições até de competir com qualidade pela audiência. No início dos anos 90 a TV Cultura chegou a dar 12 pontos de audiência no Ibope e obrigou as emissoras comerciais, o SBT, por exemplo, a mudar sua grade de programação infantil, a melhorar a grade de programação, porque estava perdendo pontos pra TV Cultura.
Então, veja a importância da TV pública, ela tem a obrigação e a missão de apresentar, de dar bons produtos de televisão para o público. E, ao fazer isso, ela cria no público um novo conceito de televisão, e esse público vai exigir da emissora comercial a mesma qualidade que ele vê na TV pública. Então, não só produz e oferece programa de qualidade, mas acaba, como que quase um subproduto desse trabalho, fazendo com que a TV comercial também se veja obrigada a melhorar a qualidade da programação. Um bom investimento numa TV publica, dando a ela liberdade e trazendo profissionais qualificados, faz com que toda a televisão, no final, melhore.
O que o faltou para o Brasil ser uma BBC?
L.L.L.F. – Faltou uma política no início do rádio aqui no Brasil. Na década de 30, era quando era só rádio, faltou uma política de incentivo à rádio difusão pública. E se entregou esse setor da sociedade para a iniciativa privada. Só foi se pensar efetivamente numa TV pública na década de 50, quando o Getúlio Vargas cogitou de criar a TV Nacional, dando um canal de televisão pra rádio nacional do Rio de Janeiro, mas ele sofreu uma carga brutal contrária de empresários que já tinham constituído suas emissoras que eram dominantes. E que são eles mesmos que estão aí até hoje, salvo o [Assis] Chateaubriand, que faliu e morreu. Como não houve, no início, um empenho do estado de impulsionar o rádio e a televisão pública, os empresários foram ocupando esse setor. E quando o Estado tenta voltar a ter alguma ação protagonista nesse setor, recebe uma carga contrária muito grande, porque os empresários não querem abrir mão do privilégio que é ocupar esse setor.
Na Europa foi o contrário: o Estado, desde o começo, foi quem criou as emissoras. As emissoras públicas sempre deram a linha, a tônica, e só foram ter concorrentes privados agora a partir da década de 80, majoritariamente. Aqui no Brasil o que ocorreu foi o inverso do que ocorreu na Europa. Lá a prioridade foi dada, desde o início ao serviço público. Aqui no Brasil, quando surgiu o rádio, com o Roquette Pinto, a ideia era fazer que nem a BBC, os ouvintes se quotizavam para manter a rádio, que era a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro. A BBC também é assim, só que é assim até hoje. São os telespectadores e ouvintes que mantém, com uma taxa, o funcionamento dela, para que tenha liberdade em relação ao estado e não dependa, também, da propaganda.
Provavelmente porque os governantes europeus já viam a comunicação como um quarto poder?
L.L.L.F. – Os estados já sabiam da importância, claro! Por isso já tinham que preservar a independência em relação a interesses comerciais, por exemplo. Agora, eles foram fazendo de tal forma que o Estado criou, montou, mas abriu mão do controle. O controle, em quase todos esse países, nas TVs Públicas, é um controle da sociedade. Como está se tentando fazer com a TV Brasil. Os conselhos são conselhos que saem da sociedade, não é o Estado que determina. Não é o Estado que impõe. O Estado às vezes até financia, mas ele não manda, não dirige. Quem deve dirigir é a sociedade através desses conselhos.
Acredita que o que ocorre com a TV Cultura, neste momento, é decorrência de falhas no gerenciamento na maneira como foram implementadas as programações, que poderiam não ser tão ‘atraentes’, ou o problema está restrito ao âmbito político?
L.L.L.F. – Acho que são as duas coisas. De um lado, uma série de falhas nos últimos 15 anos em que o PSDB está no governo do estado de São Paulo, e que indicou sempre os seus gestores. A TV Cultura não conseguiu, nesses últimos 15 anos, o sucesso que teve anteriormente. São comportamentos que chamo de erráticos: vai por um lado, vai para o outro, tenta se popularizar… Chegou-se a criar programas popularescos para atrair audiência. Ou então, sendo usado, nitidamente, pelo governo do estado para fazer política, para difundir os interesses do partido que está no governo.
A solução não é cortar, é o contrário. Porque a solução que se apresenta agora é cortar tudo, pelo que estou lendo, é cortar salários, é cortar recursos. Sendo que a solução é exatamente o contrário: é investir em equipamento, investir em tecnologia. Mas, principalmente, investir em capacidade, em competência profissional, em profissionais de qualidade que existem nesse mercado e estão loucos para produzir alternativas a essa televisão comercial que está aí. E a TV Cultura tem, apesar de todas essas crises, um patrimônio físico, cultural e histórico que não pode ser, de maneira alguma, jogado fora. É a televisão pública mais bem equipada do Brasil. A mais bem instalada do Brasil. Só isso dá condições pra ela de receber incentivos financeiros e receber impulsos criativos, e se tornar uma televisão imbatível do ponto de vista da qualidade. Mas a solução, que está me parecendo, é a solução neoliberal de cortar, de reduzir, de enxugar. Quando a política pública que a sociedade necessita é de investir, de ampliar, de ousar, de criar.
Sobre essa dicotomia entre a cultura popular e a cultura erudita, não seria necessário mudar a programação para atrair as massas…
L.L.L.F. – Isso já ocorreu, quando o [Geraldo] Alckmin era governador, as pessoas colocadas por ele lá [Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta] foram nessa direção, de fazer programas popularescos para nivelar por baixo a TV Cultura. Quando o papel dela é jogar um pouquinho para cima, em termos de qualidade, mas de uma forma atraente que faça com que o público vá gradativamente descobrindo que há uma alternativa na televisão. Não é para ficar dando aula de alemão, nem fazendo alta literatura, mas é fazer programas musicais, até dramaturgia, seriados. Enfim, que atraiam o público também. E já foi demonstrado que, se isso for feito, há audiência para televisão. Não é para fazer nada erudito e que vá só atender uma parcela insignificante da população. Não é isso. Mas descobrir um meio termo entre isso e o que a televisão comercial faz. Você tem que ir além do que a televisão comercial faz, sem necessidade de ficar num gueto, que só algumas pessoas entendem e assistem.
Esse é o desafio da TV pública. Ela não pode ficar refém de índices de audiência, mas também não pode desprezar a audiência. Não pode ser refém do Ibope, como são as emissoras comerciais, mas também não pode desprezar esses índices, porque tem que levar em conta que trabalha com dinheiro público e esse dinheiro público deve ser usado para atender os interesses da população. Se ela dá traços de audiência, não está atendendo os interesses da população. A TV pública tem que trabalhar nesse limite, que é estreito, mas é fabuloso pensar que pode caminhar para uma alternativa que está aí, sem ser erudito, sem ficar no Olimpo, longe da realidade.
Até importante você ter falado disso, porque lembro de, em domingos, ter tentando assistir à programação da TV Cultura e ver programas de ópera… uma coisa muito rebuscada no horário da tarde.
L.L.L.F. – Você pode fazer perfeitamente um programa agradável, alegre, no domingo à tarde, já que o público brasileiro está acostumado a ver programas de auditório – porque é Gugu, Faustão, Silvio Santos, sempre a mesma coisa – e perfeitamente fazer um bom programa de auditório, agradável, estimulante, sem cair naquela baixaria. Dou um exemplo claro: a TV Bandeirantes colocou no ar um programa chamado É tudo improviso, nas férias do CQC, e agora estão colocando no ar, me parece que na terça-feira, umas 11 horas da noite… é um grupo de teatro que faz improviso, trabalha com humor mas improvisando sempre, mas de alto nível. Esse grupo se colocado numa TV pública, num domingo à tarde, estaria conquistando um público de telespectadores acostumados a esses programas de variedades, para um outro nível de produção artística, até trazendo gente para o teatro, ou para a música mais elaborada. Enfim, é esse o desafio, buscar a partir do referencial que a sociedade se acostumou, algo a mais.
Audiência incomoda os demais canais que, por sua vez, podem pressionar as TVs públicas para não melhorarem a programação?
L.L.L.F. – Um papel dos conselhos é defender a TV pública das ameaças da TV comercial. Porque se a TV pública começa a ter maiores índices de audiência, a TV comercial pode se adapta e melhorar para concorrer, ou começa a fazer pressões políticas sobre a televisão para não deixá-la conquistar esses índices de audiência. Esse talvez é um dos maiores desafios. Porque a questão ideal seria ajudar a transformar outros os outros canais, entretanto todos os outros canais, em vez de prezarem pela mudança acabam exercendo pressões sobre o governo. Enfim, sobre quem tem algum tipo de poder sobre a TV pública para evitar que ela concorra efetivamente pelos índices de audiência. Talvez um dos maiores desafios que uma TV pública de qualidade tem a frente quando começa a melhorar é enfrentar as pressões dos empresários das emissoras comerciais.
Existe algum exemplo da participação pública da sociedade além da TV Brasil?
L.L.L.F. – Vou te dar um que conheço, mas que está em processo de formação, que é a TV Pernambuco. Ela está sendo reestruturada e foram chamados para a reestruturação pessoas e movimentos que vêm há muito tempo trabalhando pela democratização da comunicação em Pernambuco. Eles fizeram um processo de três meses – terminou agora no começo de julho – de discussão da sociedade. Eu fui convidado e participei de um desses debates em que havia 200, 300 pessoas discutindo o que esperavam de uma TV pública. Fizeram um projeto e entregaram para o governador, em julho. E é bem possível que até o final do ano eles passem a implementar esse projeto. Então há uma luz no fim do túnel. A TV Pernambuco é uma luz no fim do túnel e não um trem que vem no sentido contrário.
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Jornalista