Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

César, a Globo e o circo na TV

Há algum tempo podemos identificar um empobrecimento técnico e ético do telejornalismo paranaense, principalmente devido a posicionamentos de produção adotados nos telejornais da emissora hegemônica no estado, os quais têm levado a uma exploração cada vez mais espetacularizada de fatos e assuntos banais que tomam espaço e tempo que poderiam ser ocupados por temas de efetiva relevância em aspectos socioeconômicos e culturais.

Ao mesmo tempo em que é dado destaque desnecessário para temas irrelevantes, parece haver uma orientação para que as reportagens sejam produzidas primeiramente com o objetivo de colocar na tela elementos de apelo à emoção fácil, muito mais do que por em evidência as informações socialmente úteis.

Diante dessa constatação que é facilmente feita ao assistirmos todos os dias aos telejornais da RPC-TV, torna-se recorrente a indagação de quais são os critérios adotados para a produção jornalística dos noticiosos da emissora, como são selecionadas e escolhidas pautas, o que leva um tema a gerar material jornalístico, ou ser simplesmente descartado?

Além disso, quais os princípios éticos que realmente norteiam os procedimentos e a conduta dos profissionais envolvidos, e que deveriam ser refletidos nos conteúdos e na forma dos produtos jornalísticos apresentados?

À primeira vista, assim como ocorre em boa parte da programação jornalística da Rede Globo, à qual a emissora paranaense é filiada, fica claro que uma das normas é a autorreferência, tal a quantidade de matérias, reportagens, notas, comentários, que são produzidos sobre novelas, programas, séries, profissionais de seu corpo funcional, só para ficar em algumas citações.

Se usarmos apenas um dos balizamentos éticos normalmente empregados para justificar a abordagem, tipo de tratamento e a forma de apresentação de um assunto gerador de material jornalístico, qual seja o interesse público, as justificativas que porventura possam ser apresentadas para o jornalismo da banalidade global não se sustentam.

Assunto requentado

Um exemplo recente mostra a falta de maior rigor no trabalho jornalístico vigente nos telejornais da rede no Paraná. Ficamos apenas no noticiário da hora do almoço, Paraná TV Primeira Edição, que tem maior tempo de duração do que a segunda edição veiculada no início da noite. Nos dias 7 e 8 de abril, uma das reportagens tinha por assunto a final do BBB 15 em que um dos finalistas era na ocasião morador da cidade de Guarapuava, município do centro-oeste paranaense.

A não ser pelo atendimento aos objetivos mercadológicos – e de visibilidade – do conglomerado de comunicação mais poderoso do país, não há como considerar tal assunto de real interesse público, mesmo diante do argumento de que o público quer saber sobre o tema, pois como apontam Christofoletti e Triches, “os ‘interesses do público’ caracterizam ‘o que a audiência afirma querer’. Já o ‘interesse público’ é equiparado ao que é importante à sociedade, independente do que a audiência anseia objetivamente” (2014).

Na edição de 7 de abril, o telejornal mostra uma reportagem de 2’02” aberta pelo âncora que fala singelamente: “Hoje é dia de final no Big Brother Brasil e tem paranaense nessa grande decisão”. Prossegue dando informações sobre os dois finalistas, o valor do prêmio em disputa e chama a repórter, indagando se há muita torcida na cidade. Entrando ao vivo direto de Guarapuava, a repórter primeiro dá boa tarde ao âncora e, em suas palavras, “a todo o mundo”; diz que já foram feitas outras reportagens com fãs e familiares de Cesar e informa que serão mostradas imagens de uma estrutura que está sendo montada em uma praça, com palco onde se apresentarão artistas locais e duplas sertanejas inclusive uma participante do The Voice Brasil. Continua com seu texto, informando que haverá presença de um ex-BBB (entram imagens em meio a uma lavoura de milho, seguidas de imagens de edição anterior do programa, e volta a imagem da repórter ao vivo). A repórter aparece dizendo que a grande final será apresentada no palco em painel de LED e “o pessoal vai poder ir à praça, tudo de graça, para acompanhar a grande final com Cesar Lima que é morador de Guarapuava desde os 15 anos de idade, estuda Direito em uma faculdade da cidade; a família dele mora num distrito da cidade e estará assistindo a grande final”.

A repórter volta para o âncora que agradece as informações e deseja “boa sorte ao Cesar e a toda cidade, afinal de contas está todo mundo torcendo”. O âncora passa a falar com a apresentadora da previsão do tempo que diz Guarapuava ser uma cidade pequena e o pessoal fica ainda mais envolvido.

No dia seguinte, 8 de abril, o mesmo noticiário em sua primeira edição repete o assunto, em nova reportagem com tempo de 2’46”. A abertura do telejornal é feita em grande estilo, o âncora no estúdio aparece dizendo: “A gente começa falando da vitória paranaense e da grande festa em Guarapuava. Mais de nove mil pessoas se reuniram no centro da cidade para assistir à final do BBB. Cesar Lima, que nasceu em Inácio Martins, mas mora em Guarapuava, é o campeão”. Segue-se um off com imagens, captadas ainda antes de sair o resultado, de pessoas aglomeradas na praça, dançando e agitando cartazes, e o áudio da repórter: “O que não faltou foi torcida pro Cesar Lima, até na unha e na roupa” (imagens de meninas com fotos do vencedor estampadas nas unhas e em camisetas).

Não podia faltar…

A reportagem continua com um “fala povo” banalíssimo, sem qualquer importância jornalística.

>> Repórter (para um grupo de garotas): “Fala uma coisa, vieram uniformizadas pra torcer pro Cesar?”

>> Resposta: “Com certeza! É Cesar, Cesar, Cesar”.

>> Repórter: “Por que tanto Cesar?”

>> Resposta de outra menina: “Ah, porque ele é uma pessoa humilde, merecedor de estar lá”.

>> Repórter: “Essa torcida faz toda diferença pra ele?”

>> Resposta de uma terceira garota: “Com certeza! Olha quanta gente torcendo pro Cesar, ele merece. Guarapuava inteira se uniu”.

>> Repórter: “A família do Cesar foi para o Rio de Janeiro acompanhar a final, mas ficou uma torcida bem especial aqui em Guarapuava. É a Keila e o Elvis, que são os melhores amigos do Cesar. A expectativa fica grande e o coração junto com ele, Keila?”

>> Resposta: “Muito! A gente está muito confiante. Estamos na torcida desde o primeiro dia e quando anunciaram o nome dele, a gente já começou a reunir gente e estamos aqui, juntando voto e fazendo tudo pra ele ser campeão”.

>> Repórter: “Elvis, fala uma coisa pra mim: você imagina ou o Cesar imagina que ele está com todo esse carinho aqui do lado de fora?”

>> Resposta: “Ah, eu acho que sim. No começo, acho que a cidade não tava muito unida, mas depois que ele foi crescendo dentro do jogo ele ficou bem forte”.

Na continuidade, entra novo off onde surgem imagens da unidade móvel da emissora, aparentemente uma profissional de edição sentada à frente dos equipamentos, depois a repórter, o telão instalado junto ao palco, o público presente, cantores se apresentando, pessoas em sacadas de prédios próximos e a praça lotada. No áudio, o seguinte texto: “Uma estrutura foi montada pela RPC na Praça Nove de Dezembro. Uma grande equipe trabalhou nos bastidores e na cobertura do evento. Um telão de LED foi colocado pro pessoal acompanhar a final. E também teve programação musical pra animar o público. Mas a atração principal estava lá no telão. Teve gente que até improvisou e assistiu à final de camarote. O anúncio veio e o título também para alegria das mais de nove mil pessoas que acompanharam e vibraram com o resultado final” (imagens do público vibrando).

Entra o áudio do apresentador do BBB dizendo, com incrível criatividade: “A Cesar o que é de Cesar”! A reportagem é finalizada com a repórter entrevistando uma criança.

>> Repórter: “O que é esse olhinho cheio de lágrima?”

>> Resposta: “É por causa que o Cesar mereceu ganhar. Eu tava torcendo bastante pra ele poder ganhar, e ele foi bastante humilde com as pessoas lá dentro”.

Foi o grand finale. Não poderia faltar a criança chorando. Onde foram parar os princípios éticos que deveriam ser norteadores do jornalismo? Ou melhor, daquilo que pretendem seja reconhecido como jornalismo?

Referências

Christofoletti, R.; Triches, G. L. “Interesse público no jornalismo”. Revista FAMECOS. Porto Alegre, v. 21, n. 2, p. 484-503, maio-agosto 2014.

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João Somma Neto é professor da UFPR e pesquisador associado do objETHOS