Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Chimarrão com rapadura

A verdade é que os brasis precisam se conhecer e se olhar, um na cara do outro. A verdade é que a maquiagem está aparecendo mais do que a cara. A verdade é que o Brasil profundo precisa emergir do silêncio ao qual tem sido historicamente relegado desde o advento da civilização do audiovisual. A verdade é que nossos contrastes nos definem mais do que nossas semelhanças. A verdade é que só somos o que somos por causa de nossa diversidade. A verdade é que somos chimarrão com rapadura, rasqueado com timbalada, chula com baião, xaxado com marabaixo, mas pouca gente sabe disso. A verdade é que a vaca está indo para o brejo, todo mundo está vendo mas, na hora do vamuvê, ou seja, quando por algum motivo alguém pronuncia a expressão maldita – regionalização da produção audiovisual – irrompem maremotos e furacões, e logo aparece alguém para lembrar pela octogésima vez que o assunto ainda não está maduro, precisa de mais tempo para ‘aparar as arestas’, e coisa e lousa, e etcetera e coisa e tal. I así pasan los dias e tu mi contestando: quizas, quizas, quizas. Há décadas tem sido assim.

Outro dia, durante um debate em Brasília, o ministro Gilberto Gil defendeu a tese de que música de baixa qualidade (baixa qualidade para alguns, frisou) também é cultura, portanto merece que lhe assegurem espaço próprio de expressão e apoio institucional. No início dos anos 70, o poeta e letrista Torquato Neto me escreveu uma carta mais ou menos na mesma linha. Lembrava que existe uma canção das esquinas, uma canção decididamente popular. E indagava, só pra provocar: ‘Quem tem medo de Nelson Ned?’

Até aí, tudo bem. Mas, no frigir dos ovos, o que temos feito do tempo daquela carta aos tempos de hoje é repetir a fórmula genialmente sacada pelos tropicalistas (Torquato e Gil são tropicalistas, só pra lembrar) de que não deve haver discriminação ou privilégio ante qualquer tipo de manifestação cultural. Na prática, até hoje Caetano tem levado o princípio erigido em totem naquela época às últimas conseqüências. Basta ver que seus últimos ‘sucessos’ têm sido regravações de bregas-chiques do nível de Peninha et caterva. Mesmo a canção de Lisbela e o prisioneiro, que rodou mais do que juízo de doido quando o filme foi lançado, a partir do belo arranjo de André Moraes, é de uma indigência atroz, do ponto de vista da letra (graças à divina providência ‘Você não me ensinou a te esquecer’ não mereceu tradução simultânea na festa do Oscar).

Na prática, o chamado ‘respeito às manifestações populares’ pode ser traduzido simplesmente em respeito ao mau gosto, que passou até a merecer proteção especial. Mas, e as manifestações culturais do Brasil profundo, por onde andam, onde aparecem, em que espaço se expressam? Coco, catira, Festa do Divino, Boi de Mamão, Ciranda, mujica de camarão e moqueca de siri mole, já ouviu falar, sabe onde se vende? Sim, é preciso ter coragem de remar contra a maré mediocrizante (e até ser acusado de xenofobia, tradicionalismo ou reacionarismo). Mas – citando o próprio Torquato – alguém tem de exercer as funções de medula e osso nessa história. Para ficar só nos tropicalistas, eles gravaram Vicente Celestino e Odair José, chegaram a Peninha e Fernando Mendes (autor de ‘Você não me ensinou a te esquecer’). Outro dia o próprio Gilberto Gil realizou belo trabalho de resgate da música e da dança juninas numa série que passou uma vez na tv (segmentada) e sumiu.

Coragem em falta

Os principais argumentos contrários ao projeto de regionalização da produção cultural, de autoria da deputada Jandira Feghali, são os de que seria impossível cumprir a exigência de produção e veiculação de um certo número de horas semanais realizados pelas emissoras das grandes redes em cada praça. Diante da aparente dificuldade de aplicação do que preceitua o projeto, e preocupados em não ferir os interesses das grandes redes para não sofrer represálias como a inclusão de seus nomes numa eventual lista negra, os parlamentares vêm preferindo a comodidade da omissão. Toda vez que se fala em regionalização, os argumentos retornam: não há recursos humanos nem financeiros para produzir programas com a qualidade dos produzidos pelas redes. Então, melhor é reproduzir os conteúdos gerados no eixo Rio-São Paulo. Enquanto isso, a vaca vai seguindo em marcha batida em direção ao brejo.

Não por outra razão, mas sobretudo pela coragem de enfrentar um problema grave quebrando paradigmas e dando a cara a tapa, a Universidade de Brasília decidiu implantar o sistema de cotas para reduzir as desigualdades histórias que comprometem o desenvolvimento das populações afrodescendentes. A professora Dione Moura, que coordena o projeto na UnB, está com o lombo grosso das pancadas que vem recebendo. Já foi acusada de tudo, inclusive de racismo às avessas. Mas é preciso dar a ela e à direção da UnB o crédito pela ousadia e pela coragem de assumir o risco de estarem quebrando uma cesta de ovos para fazer a omelete. Mais fácil, é claro, seria a omissão. Negros e pardos continuariam onde sempre estiveram e tamos conversados. Só que eles decidiram enfrentar o touro à unha, e estão conseguindo domar o bicho, apesar dos estrebuchos. Se deputados e senadores tivessem um centésimo da coragem de pessoas como a professora Dione Moura e dos demais dirigentes da UnB, a situação crítica em que se encontra a questão da regionalização da produção audiovisual brasileira não estaria se arrastando há pelo menos 13 anos. Nas crise do abastecimento em quem estamos atolados o produto que mais tem faltado nas prateleiras dos supermercados é coragem.

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Jornalista, pesquisador, professor da UnB, documentarista, autor de A noite das reformas, O salto sem trapézio, Vermelho, um pessoal garantido, Caprichoso: a Terra é azul e Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês. Este artigo é parte do projeto acadêmico Telejornalismo em Close (http://caid.sites.uol.com.br), coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para (paulojosecunha@uol.com.br)