Está na boca do povo: se não deu na televisão, não existe. À parte o exagero, faz sentido. De acordo com o IBGE, mais de 90% dos domicílios brasileiros têm pelo menos um aparelho de televisão. A rede Globo de televisão penetra em 99% do território nacional, superando em alcance qualquer outro meio de comunicação.
A maior parte dos brasileiros se informa pelos noticiários da Globo. O Jornal Nacional, no ar desde 1969, tem audiência média de 35%, alcançando, só em São Paulo, quase 2 milhões de domicílios. Para se ter uma idéia da dimensão destes números, compare-se com a imprensa escrita. A tiragem diária conjunta dos três maiores jornais do país – Folha de S. Paulo, Globo e Estado de S. Paulo – é pouco maior do que 800 mil exemplares.
Crias do preconceito
As novelas globais são assistidas planeta afora. Com padrão técnico elevado, são fonte de renda importante do conglomerado Globo. Mais do que isso: ditam moda, vendem padrões de consumo, tentam vocalizar inquietações coletivas ocasionais. Seu combustível é a superficialidade. Consumidas rapidamente, somem do imaginário coletivo com igual ligeireza. Nada sobrevive depois do último capítulo. As campanhas de bom-mocismo, tão em voga nos enredos ultimamente, desaparecem como bolhas de sabão.
Com audiência média de 50%, alcançando picos de 60%, a novela Belíssima é a bola da vez. Sua história mexe com o caldeirão urbano de São Paulo, com personagens de algumas comunidades de imigrantes que ajudaram a construir a maior cidade brasileira. Lá estão gregos, judeus, um turco, um japonês e uma nordestina. Armado da simplificação dramatúrgica típica destes folhetins, o autor Sílvio de Abreu criou um amontoado de clichês que não estão longe da ofensa. Às comunidades, aos atores e à inteligência dos espectadores. É raro assistir a uma coleção tão grotesca de caricaturas.
O que vemos é um grego de anedota (dançarino-folgazão-braços abertos-hipersensível) e um turco estereotipado (comedor de quibe-gestos largos-machista/mulherengo-centrado na família). A nordestina trabalha feliz… em estado de semi-escravidão. Que poderia querer um japonês? Claro que abrir um sushi-bar! Afinal, não é essa a imagem que a desinformação e o preconceito criaram para os japoneses? Ah, faltou dizer que ele tem uma espada de samurai em casa e não consegue falar sem que se pense que está prestes a ter um ataque de nervos.
Tudo inconsistente
Quanto ao núcleo judaico, os equívocos não são menos gritantes. Algumas das mais virulentas caricaturas anti-semitas associam, sempre, judeus a dinheiro, a conspirações financeiras. Pois bem, na novela temos uma rica família judia, na qual aparentemente ninguém trabalha e a riqueza parece ter caído das nuvens. Um dos personagens não hesita em tentar comprar sua futura esposa. Dilema moral? Nem pensar. Tudo em embalagem burlesca.
O adolescente judeu do núcleo é peculiar. Excita-se com a os preparativos de seu bar-mitzvá (quantos adolescentes judeus têm esse tipo de entusiasmo?) e, numa cena em que pretende chantagear a mãe não-judia, diz que se não for atendido ‘vai para o Oriente Médio lutar com os palestinos’. É esse ânimo belicoso moeda corrente entre os jovens judeus? É essa a imagem que se quer passar? Usa quipá, como seu pai, sem ter vida religiosa. Será indispensável uma referência visual para se identificar um judeu? Passa ao público, que certamente tem pouca informação a respeito, a idéia torta de que judaísmo é apenas religião.
É com a matriarca judia que a caricatura atinge o paroxismo. Tudo nela é inconsistente, desde as frases em iídiche (alguém deveria ter explicado ao autor que esta língua, infelizmente, já não é usada nos lares judeus; o adolescente não teria como entendê-la, pois já não é ensinada nos colégios) até a desastrada interpretação da atriz, que traz nos olhos sempre arregalados a marca bizarra de textos delirantes. O abuso dos clichês torna este personagem uma farsa, incapaz de retratar as ricas alegorias ligadas à ídishe mame. A protagonista não passa de candidata a criminosa (tentou envenenar a ex-nora, a quem planeja seqüestrar para impedir que se case pela segunda vez com seu filho), com cacoetes paranóides.
Olhar reducionista
Em muitos diálogos, o termo judeu vem carregado de tom pejorativo. Um exemplo pesado. Em determinado momento, o personagem judeu vai pedir em casamento a filha do personagem turco, que diz que não vai entregar sua filha ‘a um judeu’. Este pondera que é uma pessoa como qualquer outra. Contestando, o personagem turco diz que não, que ele ‘é uma pessoa judia’, insinuando que isto é uma desqualificação. Precisa mais?
Belíssima, enfim, reforça as fantasias que habitam os porões, às vezes seculares, do preconceito. Disfarça, com tiradas de pretenso humor e escorada na popularidade de um punhado de grandes atores, os estereótipos com que trata os tipos que representam minorias étnicas, nacionais e regionais. O que aconteceria, por exemplo, se um novelista mexicano criasse um personagem brasileiro sambista-craque de bola-apreciador de caipirinha? Ficaríamos satisfeitos? Nos identificaríamos com essa patacoada?
Somos mais complexos. Não precisamos do olhar reducionista do plim-plim.
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Engenheiro químico, diretor da Associação Scholem Aleichem de Cultura e Recreação (ASA), do Rio de Janeiro