Foi uma festa pra lá de comentada. Na internet, no rádio, em jornais e revistas foi o que mais se falou na semana passada: os 40 anos da Rede Globo. Como não poderia deixar de ser, na TV o que se viu foi uma avalanche de chamadas, de vinhetas, de lembretes ao longo dos programas e até mesmo de matérias nos telejornais da casa.
Operação bem orquestrada, a celebração dos 40 anos da Globo mobilizou todos os esforços da empresa na tentativa de envolver o telespectador, gerando nele aquela sensação esquisita de ‘não posso deixar de ver isso’, ‘não posso perder’. Se a operação foi bem-sucedida ou não, pouco importa aqui. Interessa mais é perceber, em câmera lenta e com zoom, os principais movimentos que ajudaram a fazer esse processo.
Todos a bordo
Não é novidade nenhuma dizer, então, que a Globo usou o seu imenso poder midiático para ‘agendar’ os festejos no imaginário do cidadão comum. Em outras ocasiões mais prosaicas, isso já aconteceu, como no caso da quase-comoção social no nascimento de Sasha, a filha de Xuxa Meneghel. O expediente vem se tornando freqüente nos últimos anos, deixando muitas vezes de ser estratégia de comunicação para se tornar cacoete.
Não foi o caso nos 40 anos. O ataque foi programado e a convocação foi geral: além do milionário casting e dos apresentadores, os jornalistas também entraram na dança. Participaram até mesmo da cantoria na vinheta onde todos ‘convidam’ o telespectador a dizer ‘bom dia!’. Esbanjando alegria e gestos largos, repórteres de rua e de bancada se misturaram aos artistas. Nada contra, jornalista também é gente, e fica até menos hipócrita a relação que estabelecem com a empresa. A idéia por trás do heterogêneo coral é apresentar unidade, coletividade, e um compromisso comum.
Todos os telejornais da casa exibiram séries de reportagens alusivas aos 40 anos. Algumas muito bem produzidas, evidenciando recuperação de material de arquivo, realização de novas entrevistas, alocação dos mesmos repórteres em épocas distintas no período, entre outros esforços. Outras, por sua vez, mais pareciam ter sido encaixadas apressadamente na programação. Outras ainda despiram-se de qualquer pudor para ‘mostrar os bastidores’ da festa, da casa e da sua rotina. Tudo muito natural, tudo muito tranqüilo. Nas concorrentes, nem um segundo de lembrança, nada sobre o aniversário. Tudo muito natural, tudo muito tranqüilo também.
Tudo a ver
Fora do Rio de Janeiro – onde o Brasil é mais Brasil –, as emissoras afiliadas produziram vinhetas homenageando a Vênus Platinada. Em Santa Catarina e Rio Grande do Sul, a RBS vem veiculando a vinheta com bastante freqüência. Nela, o olhar do telespectador sobrevoa um mar de aparelhos de TV, em cujas telas aparecem diversas imagens. Em off, uma voz declina um texto. O olhar do telespectador evolui para um plano em que se vê um mapa do Brasil formado pelos televisores e, no exato momento em que o locutor fala em diversidade, as telas piscam simultaneamente, abandonando suas imagens originais e mostrando apenas o plim-plim da Globo. Epa! Em seguida, voltam a exibir diversas imagens, compondo um mosaico sem definição.
Velas no bolo
A semana de festejos dos 40 anos tentou sintetizar a produção da emissora, ressaltando as especialidades da casa (como o jornalismo e a teledramaturgia) e as atuais apostas (como o cinema e os musicais ao vivo). Tanto num ponto como no outro, os investimentos são pesados, o que demanda resultados expressivos e motivos de comemoração.
Geralmente, celebrações como esta têm pelo menos três funções:
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festejar a data: pois estabelecer marcos é importante em qualquer atividade. Isso ordena a história, racionaliza processos e justifica momentos que devem ser lembrados positivamente. Detentora de um acervo invejável, a Rede Globo não se faz de rogada e despejou sobre os telespectadores uma generosa geléia brasileira;**
envolver as pessoas no mesmo ritmo: apaziguando momentaneamente divergências, reunificando o que está disperso e permitindo um maior controle da história interna. Essa função ajuda a arregimentar novos contingentes de fãs e a agregar outras forças aliadas. A estratégia leva em conta alcançar quem está fora dos limites do celebrável, convidá-lo a fazer parte da festa, absorvendo-o e naturalizando a sua presença;**
demonstrar força e prestígio: celebrações como essa garantem largos espaços de exibição das vitórias e conquistas, beirando a ostentação, inclusive. No caso da Globo, a semana dos 40 anos destacou pelo menos três aspectos: iniciou a comemoração, exibindo um filme produzido por uma das empresas do grupo a partir de um sucesso da TV (Os Normais), prosseguiu esbanjando os êxitos nas telenovelas e ainda sublinhou o abismo que separa a sua estrutura jornalística da concorrência. Celebrações como essa servem para mandar recados ao mercado… Para se ter uma idéia da desproporção: das 780 novelas, minisséries e seriados de produzidos na TV brasileira de 1963 a 2005, 356 são da Globo. Ou seja, 45%, conforme o site Teledramaturgia .Torta na cara
Mas embora se queira estabelecer um clima de otimismo e de congraçamento, nem todo o mundo embarcou desarmado nos 40 anos da Globo. Vozes divergentes na internet brasileira chiaram alto na mesma semana. Foram protestos, manifestos, artigos coléricos e denúncias contra a emissora, o clã dos Marinhos e as empresas por eles controladas.
O informativo CMI Na Rua (http://brasil.indymedia.org), editado mensalmente pelo Centro de Mídia Independente, troçava com um slogan da emissora: ‘Invente, tente, faça uma mídia diferente!’. O texto lembrava que ‘apenas sete grupos controlam 80% do que é visto, lido e ouvido no nosso país e a Globo é o maior desses grupos’, que a emissora ‘nasceu com a ditadura militar, aproveitou esse período de concentração de poder para fortalecer as amizades com esses governantes e assim desenvolver o seu poderio’. A recordação veio acompanhada da repetitiva denúncia de manipulação da opinião pública. Por fim, o ‘CMI Na Rua’ convidava o leitor para um ato pela democratização da comunicação e eventos paralelos.
Para o Coletivo Brasileiro de Comunicação Social – Intervozes , o dia 26 de abril de 2005 não reserva motivos para comemoração. Em artigo publicado em diversos sites, a ONG manifesta preocupação com a propagação de uma ‘versão oficial da história’ que não condiz com a verdade, por conta dos festejos. E a paulada veio forte:
‘Porque, após 40 anos, é preciso que alguém diga, para que todos saibam, que a Rede Globo não é uma empresa cuja marca é a produção de um jornalismo isento e imparcial (…) Muito menos é um grupo que – como eles próprios reivindicam – defende o conteúdo brasileiro do perigo estrangeiro. A Rede Globo é, acima de tudo, uma organização política que atua nos bastidores dos governos brasileiros (sejam eles democráticos ou ditatoriais) em busca de garantir a execução de seus interesses. E que, não uma ou outra, mas muitas vezes, jogou contra a vontade da maioria da população para garantir o seu quinhão (…) não temos nada para comemorar na data em que a Globo comemora 40 anos. Temos muito a questionar, muito a protestar, porque queremos uma comunicação mais democrática no Brasil. E isso só vai ocorrer quando a face obscura do monopólio dos Marinho vier à tona e quando a comunicação for encarada como um direito de todos e todas’.
Não tão virulento foi o pessoal do Fazendo Media , um grupo de alunos fluminenses que estudam as relações e os processos que envolvem os meios de comunicação. No Especial Globo , o coletivo oferece um ‘contraponto’ à ‘verdade única’ disseminada pela emissora no momento, dando links a onze artigos atribuídos a Romero da Costa Machado, autor de Afundação Roberto Marinho. Segundo o Fazendo Media, Machado teria trabalhado dez anos na Fundação Roberto Marinho e teria sido assessor especial de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni. É esta condição credenciada que ajuda no ‘intuito de constituir uma fonte de consulta segura sobre a verdadeira história dessa empresa’, informa o site.
Salgadinhos no bolso
Do emaranhado do que se disse e do que se viu na semana de festejos dos 40 anos da Globo, sobra alguma coisa. Primeiro, a badalação acerca do aniversário reverte bons dividendos para a homenageada. Não só financeiros, mas também de imagem. Segundo, a gritaria ao redor da aniversariante pouco modifica a festa. Mais parece o penetra que canta atravessado o ‘parabéns’, despertando a ira dos amigos mais chegados. Terceiro, a festa de agora testou até onde a empresa pode ir em celebrações do tipo.
Daqui a dez anos, tem o cinqüentenário. Até lá, o Brasil pode ter mudado muito; a tv brasileira também; e o público idem. Entretanto, o compromisso da Globo de manter sua hegemonia nesse cenário não é algo de que se desista assim, do dia para a noite. A cúpula dirigente da emissora deve avaliar o que deu certo e o que naufragou. Tudo para que a próxima festa seja maior e inesquecível. Isso mais lembra o convidado que – mesmo farto de tanto bolo e refrigerante -, se garante, levando salgadinhos pra casa. No bolso.
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Jornalista, pesquisador e professor universitário.