Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Como desperdiçar um entrevistado

Na segunda-feira, 19/1, o convidado do programa Roda Viva, da TV Cultura, foi o físico teórico Geoffrey [Brian] West. O cientista britânico, que mora e trabalha nos Estados Unidos há muitos anos, veio ao país, ao que parece, a convite do projeto cultural Fronteiras do Pensamento.

A TV brasileira é rica em programas de entrevista, muitos dos quais (não é o caso do Roda Viva) sobrevivem como um mal disfarçado mercado persa de quinta categoria – os convidados vão até lá apenas e tão somente para, entre uma e outra platitude, divulgar o “trabalho mais recente” (CD, show, peça de teatro, livro etc.). É raro um cientista aparecer em um programa desses e, quando isso acontece, ele em geral é mal e porcamente entrevistado. Não foi bem isso o que aconteceu no Roda Viva do dia 19/1, mas acho que foi um grande desperdício.

Pontos de vista conflitantes

Nos últimos anos, o físico britânico e seus colegas (e.g., Bettencourt 2013; Bettencourt et al. 2007, 2010) fizeram descobertas importantes (e intrigantes) envolvendo o estudo das cidades. Do ponto de vista científico, importa dizer que esses novos achados têm sido obtidos com base em ferramentas e metodologias já usadas em outros contextos, tanto por outros cientistas (e.g., WHITE et al. 2006) como pelo próprio West (e.g., GILLOOLY et al. 2001).

Do ponto de vista jornalístico, no entanto, isso não importa muito. O que parece chamar a atenção é apenas o objeto da pesquisa (i.e., cidades) e, por extensão, tudo o que o senso comum relacione a ele. Trocando em miúdos, os jornalistas parecem imaginar que se um cientista fez alguma descoberta envolvendo as cidades, ele deve saber muita coisa sobre cada uma delas… Ocorre que a verdade costuma ser bem outra: é possível fazer descobertas científicas relevantes a respeito das cidades, mesmo sabendo muito pouco a respeito de qualquer uma delas em particular.

Uma ciência das cidades?

West e seus colegas encontraram padrões aparentemente universais – e.g., certos atributos mudam de maneira bastante previsível com o tamanho das cidades, a despeito, por exemplo, do país ou do continente onde elas se encontram. Ponto.

Diante de tal revelação, penso que caberia esclarecer aos telespectadores que atributos seriam esses. E mais: o que teria determinado a inclusão na pesquisa de determinadas variáveis, mas não de outras? Essas perguntas não foram feitas. Por sorte, o entrevistador se preocupou em falar um pouco sobre a origem do que ele vem fazendo, ressaltando a analogia com trabalhos semelhantes conduzidos em outras áreas, especialmente na biologia.

Tendo o entrevistado revelado que certos atributos variam à medida que a população das cidades aumenta de tamanho, caberia então levantar outro tipo de pergunta: por que isso acontece? Ou, mais especificamente, por que certos atributos variam de determinado modo, e não de algum outro modo qualquer? Um ou outro entrevistador até apontou nessa direção, mas todas (ou quase todas) as perguntas feitas eram de natureza provinciana – coisas do tipo “como a sua teoria explica o trânsito caótico ou a violência em São Paulo?” (No próprio material de divulgação do programa, encontramos inversões como esta: “O físico britânico explica o que deve ser feito para que cidades brasileiras funcionem de acordo com a sua teoria.”)

Outras perguntas eram simplesmente descabidas (e.g., em mais de uma oportunidade, um ou outro entrevistador ventilou a necessidade de certas questões estéticas serem incluídas na discussão), revelando não apenas um desconhecimento específico em relação ao trabalho do entrevistado, mas, o que é pior, revelando um desconhecimento a respeito da natureza da pesquisa científica. Não custa lembrar: não existem perguntas burras (ver, neste Observatório, o artigo, “O combustível que move a ciência”), mas é perfeitamente possível formular perguntas inadequadas.

De resto, perguntas importantes e aparentemente óbvias não foram feitas. Por exemplo, levando em conta as variáveis examinadas, qual seria o cenário mais indicado: concentrar a população de um país em umas poucas megacidades ou dispersá-la em muitas cidades pequenas? Ainda nesse contexto, haveria ou não um tamanho ótimo para as cidades?

Coda

Todo esse desencontro, alimentado talvez pelo perfil dos entrevistadores (dois jornalistas, dois arquitetos e, ao que parece, um sociólogo, mas nenhum cientista com experiência na área do entrevistado), resultou em uma entrevista das mais frustrantes. A coisa toda só não foi pior porque o entrevistado, habituado que deve estar a esse tipo de situação, ajustou o discurso, tendo sido bastante didático em suas colocações.

A presença de um cientista ativo em um programa como o Roda Viva é uma oportunidade valiosa em termos de divulgação científica. É uma pena, portanto, vê-la sendo desperdiçada. Sugiro aos produtores do programa que, sempre que um cientista ativo estiver no centro da conversa, eles se habituem também a convidar ao menos um segundo cientista para integrar a bancada de entrevistadores. Isso pode fazer uma diferença e tanto.

Referências citadas

** BETTENCOURT, LMA. 2013. “The origins of scaling in cities”. Science 340: 1438-41.

** —— & outros quatro coautores. 2007. “Growth, innovation, scaling, and the pace of life in cities”. PNAS 104: 7301-6.

** —— & outros três coautores. 2010. “Urban scaling and its deviations: revealing the structure of wealth, innovation, and crime across cities”. PLoS ONE 5(7): e13541.

** GILLOOLY, JF & outros quatro coautores. 2001 “Effects of size and temperature on metabolic rate”. Science 293, 2248-51.

** WHITE, CR; PHILLIPS, NF & SEYMOUR, RS. 2006. “The scaling and temperature dependence of vertebrate metabolism”. Biology Letters 2: 125-7.

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Felipe A. P. L. Costa é biólogo e escritor, autor, entre outros, de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2ª edição, 2014)