Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Controle público não é censura

O recente acordo firmado entre a Rede TV!, o Ministério Público Federal (MPF) e Organizações Não-Governamentais defensoras dos direitos humanos – em função de uma Ação Civil Pública movida pelo MPF e pelas entidades contra a violação de direitos no programa dirigido e apresentado por João Kleber –, é uma importante vitória de todos os defensores dos direitos humanos, em especial daqueles que acreditam que uma das condições fundamentais para a realização da democracia é o fortalecimento dos mecanismos de controle público da mídia, principalmente do rádio e da televisão.

Para alguns, a interrupção do sinal da emissora – que não foi pleiteada inicialmente pelas organizações, mas ocorreu por descumprimento de decisão judicial que a obrigava a transmitir os programas que promovam os direitos humanos como forma de contrapropaganda – foi uma decisão arbitrária, injustificável num país com aspirações democráticas. Os acusadores, temerosos com o despertar da sociedade brasileira para o uso indevido do bem público, que é o espectro eletrônico por onde circulam os sinais da televisão, pregam que a decisão da Justiça foi um ato unilateral de censura.

Os que acompanharam a repercussão dos fatos puderam notar que, aos acusadores, faltam argumentos, inclusive do ponto de vista jurídico, e sobram tentativas de defender interesses escusos, a exemplo da manutenção do atual cenário de concentração da mídia, que não permite que o cidadão brasileiro tenha acesso a uma televisão, cujo conteúdo seja de fato representativo da nossa diversidade.

No entanto, a despeito dos gritos acusatórios, a sociedade brasileira compreendeu a motivação dos autores e aplaudiu os resultados da Ação Civil Pública, que solicitou a interrupção imediata do programa do apresentador João Kleber e a cessão de espaço para veiculação de programas que promovam os direitos humanos em resposta às violações sistemáticas cometidas nos programas do apresentador. Mesmo diante do reconhecimento público da importância histórica desta iniciativa, é pertinente uma breve reflexão sobre o conteúdo do pedido acatado pelo Judiciário, para que não restem dúvidas de que a decisão não pode ser confundida com um ato de censura.

Concessões públicas

O Estado brasileiro tem o dever de proteger tais direitos contra as violações promovidas pelas emissoras de televisão. Durante anos, Rede TV! e João Kléber valeram-se da omissão do Estado para disseminar mensagens de intolerância e preconceito. Por isso, nomear de ‘arbitrária’ a decisão da Justiça de conceder o direito ao telespectador de receber informações que promovam os direitos humanos, é um erro político, cultural e, também, jurídico. O fato em questão nada mais é do que um ato de controle público, de defesa do Estado de Direito e, portanto, da democracia.

Baseada na Constituição Federal, a suspensão do sinal da emissora por aproximadamente 25 horas foi, na verdade, um ato de anticensura, que buscou única e exclusivamente garantir que o cidadão – que hoje tem acesso a um único ponto de vista, preconceituoso e racista, no programa de João Kleber – possa assistir a uma outra televisão, que lhe ofereça informações diversas e novos olhares não somente sobre a questão homossexual – foco da Ação Civil –, mas também que respeitem os direitos humanos. Mais do que isso, a decisão da Justiça buscou garantir o controle e o interesse público sobre algo que pertence à população: as concessões de televisão.

Os serviços de radiodifusão – ou o rádio e a TV – são objetos de concessões públicas. Ao contrário de um entendimento comum de que os concessionários são donos dos canais que operam, o direito de explorar uma freqüência e a transmitir conteúdo (ganhando dinheiro com isso) é concedido pelo Estado brasileiro, em nome do povo, ou seja, de cada um de nós.

Direito reconhecido

Mas por que a televisão e também o rádio são objetos de concessão pública? Em primeiro lugar, porque o espectro eletromagnético é finito, ou seja, é um bem escasso, e precisa ser organizado de maneira a não permitir que haja sobreposições de freqüências. Em segundo lugar, e mais importante, porque a radiodifusão é um espaço fundamental para o exercício de direitos humanos, como a liberdade de expressão e os direitos à informação e à cultura, entre tantos outros.

Além disso, a atual centralidade da mídia na formação de valores é incontestável, o que coloca aos concessionários de freqüências de televisão uma série de deveres que devem ser cumpridos em nome do interesse público pelo qual devem zelar, sob pena da perda da concessão. No caso do Brasil, a responsabilidade das emissoras é ainda maior, pois a presença da televisão é extremamente forte, quase absoluta, já que a imprensa escrita, como se sabe, não alcança um número expressivo de leitores, e a internet ainda tem um universo de usuários muito restrito.

Respeitar os valores éticos da pessoa, como afirma o artigo 221 da nossa Constituição, dentre os quais se encontram, certamente, a dignidade humana, a igualdade de todos e o respeito à honra, à liberdade e à privacidade alheias, são alguns dos deveres mais importantes das emissoras de televisão. Por isso, como concessionárias de serviço público, elas estão sujeitas às normas que regulam o setor, ou, pelo menos, deveriam estar.

No caso da Rede TV!, o não cumprimento de suas obrigações legais atingiu níveis inaceitáveis, violando explícita e reiteradamente os direitos fundamentais, única e exclusivamente para a obtenção do lucro. Durante dois anos, em transmissão quase diária, foram emitidas mensagens preconceituosas e ofensivas à dignidade humana e, por isso, a decisão da Justiça – e o posterior acordo entre os autores da ação e a emissora – é nada mais do que o reconhecimento do direito de milhões de brasileiros a uma programação televisiva que respeite os direitos fundamentais (e constitucionais), já que a discriminação e as humilhações exibidas nos programas de João Kléber não atingem apenas um ou outro indivíduo ou grupo social, mas a todos nós.

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Jornalistas, integrantes do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social; artigo publicado originalmente no jornal Brasil de Fato nº 143 (24 1 30/11/2005)