Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Das glórias de Perez e Magadan

A novelista Glória Perez é talvez a mais original no universo ficcional dos dramaturgos vivos da TV brasileira. Os temas e abordagens escolhidos por ela vão por onde ninguém vai na atualidade. Barriga de aluguel, Explode coração, O Clone, América e, agora, a exotíssima Caminho das índias são exemplos de como o ato criativo da autora se manifesta num caldeirão de imagens, histórias estranhas, hibridação de conceitos, de tempo e lugar e pesquisa enciclopédica constituindo alegoria alucinante. Como um desfile de escola de samba do grupo I-A.

Esse universo ficcional se aproxima do que Edgar Morin, em O paradigma perdido, chama de ‘homo demens’: ‘O homem é um ser de uma afetividade intensa e instável, que sorri, ri, chora, um ser ansioso e angustiado, um ser gozado, ébrio, extático, violento, furioso, amante, um ser invadido pelo imaginário, um ser que conhece a morte, mas não pode acreditar nela, um ser que segrega o mito e a magia, um ser possuído pelos espíritos e deuses, um ser que se alimenta de ilusões e de quimeras, um ser subjetivo cujas relações com o mundo objetivo são sempre incertas, um ser sujeito ao erro e à vagabundagem, um ser úbrico, que produz desordem. E como chamamos de loucura à conjunção da ilusão, do excesso, da instabilidade, da incerteza entre o real e o imaginário, da confusão entre o subjetivo e objetivo, do erro, da desordem somos obrigados a ver o `homo sapiens´ como `homo demens´.’

Príncipes, turbantes e influência rocambolesca

A criatividade da autora extrapola o mundo da realidade ou verossimilhança no universo de fantasias que a mídia televisa alimenta e precisa para manter audiência. E funciona, pois o homem multifacetado, fruto da sociedade do espetáculo, quando o ‘ser’ se desloca para o ‘parecer’, e da tecnologia, que promove a idolatria midiática, que transfere a adoração para os celulares, ipods, mp3, laptops e computadores de mesa. A novela Caminho das índias é ancestral e pós-moderna. Traz as índias que existem no país primitivo, ritualístico, onde nada muda há séculos, nem o panejamento das roupas, nem o eterno manto cuja trama dá origem a todo o vestuário. Tem cores arrogantes, filtros incandescentes que fazem das imagens um festival onírico. A abertura da novela em feito mirror, o espelho, é uma overdose de mitos, ritos e alegorias. De perder o fôlego. Para não perder o trem da história, na trama, a heroína trabalha num call center e fala inglês. Ainda bem. Fica deslocado, promove o choque cultural, mas justifica-se assim o tempo presente.

A estética adotada pela autora remete aos anos da fase populista da história da TV, quando outra Glória, a Magadan, trazia em seus folhetins muitas pedras, plumas e tecidos exóticos. A novelista e exilada cubana Glória Magadan, falecida em 2001, autora de sucessos como Eu compro essa mulher e O sheik de Agadir (1966), A rainha louca (1967), A sombra de rebeca (1967), A gata de vison (1968) e A última valsa (1969), trabalhou na TV Globo durante três anos, escrevendo histórias que captaram as atenções de milhares de pessoas. Escrevia folhetins para uma agência de publicidade e foi diretora do Departamento de Telenovelas da emissora carioca. Era especialista em personagens alegóricos, lugares distantes e exóticos, figurinos extravagantes com carruagens, danças, príncipes, turbantes e tramas de influência rocambolesca.

De volta ao começo

Segundo Walter Clark, em O campeão de audiência, ‘com Glória Magadan, eu tinha encontrado o caminho para a liderança em novelas. A mulher era uma máquina de transformar o absurdo em sucesso. Com a importância que ela ganhou e apesar do pouco charme, passou a ser rodeada por todos os galãs ou candidatos a galãs, que queriam um papel em suas novelas. Os caras seduziam a Glória, mandavam flores, paparicavam. Provavelmente era um sacrifício enorme, mas tinham a sua recompensa’. E continua: ‘Mas eu também paparicava a Glória tanto quanto podia, dava a ela um tratamento de vela de fibra.’ No processo de modernização da emissora carioca, Glória Magadan foi dispensada.

As superproduções do cinema, nos anos 1950, foram estratégicas na chegada da TV para manter o público cativo. Os dois momentos da TV brasileira pontuados pelo estilo das duas autoras são semelhantes. A partir de sua fundação em 1965, a TV Globo buscava a preferência do público e o modelo exótico, quase ritual, de Glória Magadan, atendeu ao modelo de sedução desejado. A partir dos anos 90, a obra de Glória Perez revela influências do universo estético das novelas da Globo nos anos 60: O Clone lembra O sheik de Agadir, Explode coração evoca O rei dos ciganos e Caminhos das índias volta para a Índia ficcional de O homem proibido.

E o público adora. Hoje, com a dispersão da audiência que se distribui pelos apelos da idolatria tecnológica, é preciso conservar ou trazer de volta a parcela do público que ainda assiste à TV aberta. Por isso as novelas das nove se parecem tanto com a produção daquela época. Que volte A rainha louca…

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Jornalista, professor universitário e Mestrando em Comunicação e Tecnologia