Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Desliguem a TV, liguem a vida

Uma semana sem ver TV. Notícia nenhuma no padrão Homer Simpson. Total desconhecimento do desenredo das novelas. Distância absoluta das soporíferas sessões da tarde e seus filmes B repetidos à exaustão. Alheamento do fluxo de imagens vendendo produtos nos momentos do plim-plim. Desconhecimento da partida de futebol do time de devoção. Uma semana sem o besteirol dos programas de auditório. Click!

O tempo, que Santo Agostinho dizia ser de Deus, agora volta a ser das famílias, que podem se reunir na sala de estar para estreitar os laços há muito ausentes. E para trazer de volta a importância do diálogo familiar, que se perdeu. O tempo, mercadoria escassa, de repente, não mais que de repente, faz-se abundante para as leituras, para a reflexão, para o descansar do olhar, o relaxar dos sentidos, aguçando-os, livrando-os do torpor induzido pela dependência de horas intermináveis defronte ao aparelho de TV.

Proposta anacrônica? Revolta dos nerds? Retorno ao fundo da caverna? Não. Criticar o uso da TV e seus malefícios é o objetivo do movimento TV-Turnoff Network, iniciado nos Estados Unidos e com adeptos em vários países, inclusive no Brasil, com o nome Desligue a TV. No evento, a população é estimulada a, durante uma semana, tentar se abster do uso da ‘máquina de fazer doido’, referência do cronista Stanislaw Ponte Preta à TV.

Legitimidade

Neste ano, para o ato de desobediência civil foi escolhida a semana de 24 a 30 de abril. Nesse período, as pessoas devem ‘desligar a TV e ligar a vida’, lema da organização sem fins lucrativos, fundada em 1994. Desde então, a TV-Turnoff Network tem obtido sucesso em suas ações. No ano passado, segundo informe do site americano, mais de 19 mil organizadores planejaram eventos, com a participação de pelo menos 7,6 milhões de pessoas.

O libelo tem inspirado crianças e adultos em todo o mundo a desligarem a TV e perceberem o que é a vida, quando se dedicam a fazer mais e assistir menos, segundo comentário de Frank Vespe, diretor-executivo da organização. ‘Está claro que, cada vez mais, as pessoas percebem que, quando desligamos a TV, não deixamos a vida simplesmente passar diante de nós’, disse Frank

A organização desenvolve programas efetivos de reeducação, como o ‘Mais leitura, menos TV’, com quatro semanas de duração, destinado a escolas do segundo grau, tendo atingido mais de 30 mil alunos em todos os Estados Unidos. Muitas instituições americanas já ofereceram apoio à causa, entre elas associações médicas e educacionais, o que confere cada vez maior legitimidade ao movimento.

Boa briga

Os organizadores brasileiros listam pelo menos 100 atividades dentro de casa, fora de casa, na cidade e com as crianças, que podem ser realizadas como substituição ao tempo que passamos diante da TV. Algumas delas, se seguidas à risca, trariam como contrapartida desemprego: cancelar a assinatura da TV a cabo, por exemplo. Outras certamente injetariam mais saber e saúde em pessoas e comunidade. Praticar esportes, desenvolver habilidades manuais e manter interesses culturais, entre tantas outras atividades, são atitudes que sequer podem ser comparadas ao ato passivo de sentar e ver a vida passar na TV, especialmente com os conteúdos de baixa qualidade que temos.

Não se trata de banir a TV da vida das pessoas, mas atentar para um ponto nevrálgico que tem envolvido as discussões dessa mídia em todo o planeta: a questão da qualidade. Marcos Nisti, coordenador do Desligue a TV, deixa esse ponto bem claro:

Os movimentos relacionados à qualidade da programação televisiva têm como foco o gerador de conteúdo. Nós do Desligue a TV queremos atingir quem recebe, o telespectador. As pessoas assistem a uma programação de baixa qualidade muitas vezes pelo hábito de estar em frente à TV ou com ela sempre ligada. A partir do momento em que você discutir o seu excessivo uso, apresentando alternativas de uma vida fora da tela, o usuário deve se tornar mais seletivo, e essa seleção é um instrumento valiosíssimo para a melhora da qualidade da programação da TV brasileira.

Essa é uma boa briga, que se torna colossal no caso do Brasil, porque aqui a TV, que logo passará a ser digital, é um dos principais meios de informação da população, dado o seu baixo nível educacional. E, nessa maré desfavorável, os espertalhões da TV, sob os auspícios das autoridades, deitam e rolam, perpetuando a ignorância e mantendo baixas as expectativas culturais.

******

Jornalista, editor do Balaio de Notícias