Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Desserviço ao conservacionismo

Assisti ao documentário Capivara, exibido pela TV Cultura em rede nacional, que me deixou perplexa. Embora tenham mostrado uma parte do imenso e árduo trabalho realizado pela arqueóloga Niède Guidon e seus colaboradores, com as idéias de educar o povo para que este possa, inclusive, entender a importância do que tem em São Raimundo, o vídeo não apresentou explicações claras e contextualizadas para que a população em geral, que não acompanhou o desenrolar dos acontecimentos relacionados à implantação do Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí, pudesse compreender e avaliar a situação, sem ser tragada pelos fortes apelos emocionais.

Apelos de pessoas que se diziam injustiçadas, passando necessidades e que, em meio ao depoimento, quase sempre irrompiam em lágrimas. Introduzidas na parte final da gravação, sem dúvida foi o que restou na mente de cada espectador após a exibição. A senhora de 95 anos de idade que, depois de dar seu ‘comovente’ e confuso depoimento sobre a ajuda que ofereceu à doutora Niède no começo dos trabalhos, ficando depois na rua da amargura, sem poder voltar às suas terras, foi, no mínimo, patética. E, não bastasse isso, ela foi colocada no encerramento do documentário cantando uma canção folclórica, enquanto passavam as legendas.

Qual o sentido desse desfecho? Não houve contraponto ao que essas pessoas apresentaram e nem esclarecimentos tão bons dos fatos quanto o apelo das lágrimas, que até um jovem caçador não conteve, ao se dizer injustiçado quando foi algemado depois de ter sido pego em flagrante delito, por exemplo. Por que não mostraram as fotos desse sujeito e do pai, que o acompanhava, com os animais que eles mataram, assim como as condições reais de vida deles?

Visão crítica

Esse documentário foi um desserviço a qualquer proposta conservacionista e educativa conseqüente. Um desserviço a tudo de importante que a doutora Niède e umas tantas outras pessoas sérias e comprometidas com a edificação desta nação vêm fazendo a duras penas. Nem mesmo as falas repetidas, verdadeiros bordões de todos esses entrevistados, que insistiam na necessidade de tirar do parque um pau, uma casca, uma caça, receberam um destaque adequado para deixar patente o comportamento exploratório desse pessoal, que trata a natureza como propriedade particular inesgotável.

Não sei quem são os produtores do vídeo, que na chamada da Cultura foi apresentado como uma maneira nova de fazer documentário, mas estou certa de que eles têm muito que aprender, a começar por um estudo profundo de todo assunto que resolverem tratar. Um estudo que lhes dê conhecimento suficiente para preparar uma edição que permita a todo cidadão a compreensão dos fatos, contextualizados e com os devidos contrapontos dentro do ideal ético da imparcialidade.

Sugiro a eles que assistam a todos os excelentes, irretocáveis e sensíveis documentários produzidos por Neide Duarte, os quais, infelizmente, deixaram de ser apresentados, e que são, estes sim, resultado de uma forma nova, poética e brilhante de se fazer documentário. Estou certa de que nunca foi tão necessário educar as crianças deste país para serem literária e cientificamente alfabetizadas, para poderem ter visão crítica diante de matérias como essa, por exemplo, e atuar como protagonistas da própria vida, uma vida marcada pela dignidade e não por lamúrias.

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Bióloga (ecóloga), Botucatu/SP