Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Didática pela fama

O ator Reinaldo Gianecchini está doente. Isso mesmo, doente. A forma como a imprensa veiculou a notícia dá a impressão de que ele, ser humano como todos os demais bilhões que habitam o mundo, é uma exceção entre nós, mortais. A empresa à qual o ator é vinculado, a Rede Globo, divulgou a notícia sem muito alarde. O “chilique” informativo ficou por conta de reportagem exibida no Domingo Espetacular, da Rede Record, no domingo (14/08), concorrente direta da Globo.

A matéria começa com a seguinte frase: “Tão forte, de traços tão perfeitos”, para em seguida soltar um ponto de vista de fãs que “custaram a acreditar que o ator está sujeito aos dramas da vida”. Neste ponto, a matéria brinca com o drama das artes cênicas e o drama da vida real. Eles passam a sensação de custarem a acreditar que, sim, Gianecchini é um ser humano como qualquer outro.

A matéria começa com a “deificação” do ator para, em seguida, acertar explicando o que é a doença que atingiu Ginecchini e qual a realidade dela no país. Segundo a reportagem, são registrados, anualmente, cerca de 10 mil novos casos no país. Além disso, a matéria também explica como o linfoma se origina e age no organismo para, logo em seguida, exibir entrevista realizada com a médica Juliana Pereira, especialista em linfomas, do Instituto do Câncer (IC) de São Paulo. A profissional da saúde afirma que a perspectiva de cura da doença, no país, é muito boa. No entanto, a reportagem não informa que as chances de recuperação da doença são de 54%, quando descoberto o linfoma em seu estágio inicial.

Nenhuma dificuldade é apresentada

Entendi a intenção da empresa jornalística em usar a doença do ator como “gancho” para fazer uma panorama dela, parcialmente, no Brasil. Segundo o site snifbrasil.com.br, 1,5 milhões de pessoas em todo o mundo são afetadas pelo linfoma não Hodgkin. Este é o quinto tipo de câncer mais frequente no planeta. O referido site ainda informa que a empresa Roche lançou, em 2009, uma campanha denominada “Juntos Contra o Linfoma”, a qual conta com apoio de diversas sociedades médicas, com o intuito de mudar o cenário da doença no Brasil – possibilitando um aumento no número de diagnósticos precoces (fundamentais para garantir mais chances de cura para o paciente).

Voltemos à reportagem da Record. Após apresentar a doença e sustentar as informações entrevistando a médica, a emissora fala rapidamente sobre a carreira de Gianecchini, assim como detalhes de sua vida social – como ter mantido um relacionamento de oito anos com Marília Gabriela, 24 anos mais velha que ele.

Depois das “apresentações”, duas personagens são apresentadas ao público. Primeiramente o mecânico Evandro Luiz dos Santos, o qual foi apresentado como um caso de superação da doença –que combate há cerca de dois anos. A reportagem foca em pontos positivos do rapaz, como o fato dele ter engravidado a esposa – mesmo correndo o risco de ficar estéril, em decorrência do tratamento ao qual foi submetido, o que não é dito na matéria. Nenhuma dificuldade é apresentada pela matéria, dando a impressão de que a doença não é tão grave como podemos supor. A segunda personagem, apresentada como dona Norma, afirma que contraiu duas vezes a doença e, com o tratamento, se curou. A matéria é finalizada com a senhora desejando as melhoras do ator e que ele tenha paciência (justo).

Reconheço a boa intenção da Record em informar as pessoas sobre uma doença que pode ocorrer com qualquer um de nós, infelizmente. No entanto, critico a tentativa de desumanização do ator. A desumanização que digo é reforçar a imagem idealizada, platônica, que as pessoas costumam nutrir em relação às celebridades – tão humanas quanto qualquer outra pessoa no mundo.

O Brasil é um país constituído por desigualdades em várias esferas que isso possa implicar. O primeiro tipo que vem à mente é a econômica e, consequentemente, a desigualdade social. Sem recursos financeiros adequados, uma grande parcela da população depende de atendimentos públicos, inclusive na saúde, pagos pelos usuários mediante impostos e disponíveis para quem necessitar deles, independentemente de classe, cor e credo. Gianecchini se trata no hospital Sírio Libanês – pois tem condições de custear o tratamento em um local referência no tratamento do mal que o assola: sabemos que a realidade do país é outra, sem precisar me estender nesta questão.

Matéria positiva sobre doença grave

Indivíduos com uma condição financeira “melhor” (com mais dinheiro), preferem investir em atendimentos particulares. O Brasil é um país onde a medicina, tecnológica e tecnicamente, se destaca positivamente em resultados e descobertas e, contraditoriamente, oferece um péssimo atendimento público aos usuários – os clássicos problemas de demora no atendimento, consultas, exames e cirurgias, sem pensarmos nos erros cometidos por negligência, falta de preparo ou mesmo por descuido, gerado pela maratona de horas às quais os profissionais da saúde são submetidos.

Matérias revelando o descaso acima descrito, não faltam. O que falta é a indignação organizada, para que as pessoas parem de falar e comecem a agir. Sem ação, não existe reação. O rapper MV Bill contesta, em uma canção intitulada “Só Deus pode me julgar”, o seguinte: “Como pode ser tragédia a morte de um artista e a morte de milhões apenas uma estatística?”

A doença de Gianecchini ajudou a produzir uma matéria positiva sobre uma doença grave, que é amenizada para que os fãs se acalmem em relação à enfermidade de um “semideus”, produzido pela carência das pessoas e esperteza de produtores em oferecer um modelo, literalmente, a ser admirado – e nada além disso.

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[Alfredo Henrique é jornalista, Guarulhos, SP]